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30 de mar. de 2014

O outro lado do golpe: por que não houve uma resistência significativa?

Nossas vidas seriam outras se houvesse um mero esboço de resistência em 64. Venceríamos? Perdemos por WO, essa é que a verdade difícil de aceitar.

As análises, rememorações, depoimentos sobre o golpe militar de 1964 e as suas conseqüências se sucedem. Mas é necessário também analisar o outro lado dos acontecimentos de então, o que leva a uma questão espinhosa: por que não houve uma resistência significativa? Vamos considerar algumas alternativas que, se não são ditas explicitamente, sempre rondam os comentários.

1) A personalidade de João Goulart
Este é um dos primeiros argumentos que vêm à tona. Se o homem é ele mesmo e a sua circunstância, a de Jango não poderia ser pior naquele momento. Deprimido pela estampa pública de uma relação conjugal complicada, comprimido entre a radicalização de seu governo com a pregação das reformas de base e a sua situação de latifundiário bem sucedido, o presidente não resistiu à pressão interna. Faltou-lhe o ânimo da luta. Sua decisão de fugir sabotou a possibilidade de se organizar qualquer resistência.
 
Em 1961 o Brasil vira o maior movimento cívico e popular de sua história, pelo menos desde a Revolução de 1930. A razão desse movimento fora a manutenção da legalidade, com a posse do vice-presidente depois da renúncia de Jânio Quadros. Já naquele momento Jango frustrara as expectativas dos empenhados na campanha pela sua posse, preferindo negociar com os conservadores e liberais do Congresso a aceitação da emenda parlamentarista.
 
O gesto foi recebido aos gritos de "covarde, covarde", pela multidão concentrada em frente ao Palácio Piratini em Porto Alegre. Jango teve de sair pela porta dos fundos. Em 1964, saiu de novo pela porta dos fundos, desta vez para sempre. Teria sua disposição de resistir alterado o resultado final do golpe? Vá se saber.

2) A imprevidência do governo no setor militar
Este argumento é muito sério e merece uma consideração de peso. As forças armadas, sobretudo o Exército, saíram divididas dos acontecimentos de 1961. Houve uma divisão horizontal, na oficialidade superior, e vertical, pela importância de atitudes da tropa em momentos decisivos, como no impedimento pelos suboficiais de que os jatos da base aérea de Canoas bombardeassem Porto Alegre durante a crise.
 
Jango, o governo e os militares legalistas não souberam ou não conseguiram, ou não quiseram capitalizar o momento, permitindo que oficiais golpistas permanecessem na ativa e com comandos de tropas significativos. Nos remanejamentos subseqüentes os golpistas, que tinham saído derrotados em 1961, apesar do empate técnico da emenda parlamentarista, ganharam força e posições. O levante dos sargentos em Brasília permitiu que estes fossem presos e desmobilizados. O levante dos cabos e marinheiros, no Rio de Janeiro, às vésperas do golpe, na prática teve o mesmo efeito.
 
Em 1964 nenhum comando importante estava em poder de oficiais declaradamente legalistas. Jango teve de nomear às pressas o General Ladário Pereira Telles para o comando do III* Exército em Porto Alegre. O gesto, que poderia ser o primeiro passo de uma resistência, serviu na verdade para facilitar a fuga do presidente.

3) A radicalização retórica da esquerda
Este argumento é uma faca de vários gumes. Corta para todos os lados.
 
Há uma visão conservadora que diz que "se não fosse o Brizola, Jango não teria caído". Brizola, seduzido pela idéia de tomar o poder, radicalizara suas posições, arrastando o cunhado. Havia até uma campanha (quem se lembra?), devido à proibição de que parentes de um presidente se candidatassem ao cargo: "cunhado não é parente, Brizola pra presidente".
 
Por este lado, é difícil sustentar algum argumento mais convincente. O golpe vinha sendo tramado, preparado, ensaiado, arriscado desde 1950, quando Vargas voltara ao poder com seu populismo inclinado à esquerda. A partir da revolução cubana e dos episódios de 61 ganhara o ímpeto de uma determinação histórica, com o decidido apoio de amplos setores dos governos norte-americanos. A retórica da esquerda serviu apenas de pretexto para mobilizar manifestações como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (pobre família! Pobre Deus! Pobre liberdade!).
 
Numa outra visão, pode-se ver que se a retórica ia para a esquerda, a esquerda na verdade se esfacelava. Isso é mais consistente. O governo na verdade estava isolado; a esquerda começava um processo de divisões internas que cresceria depois do golpe militar. Esse processo de aprofundamento de divergências descolou-a da perspectiva de esboçar qualquer gesto em defesa do governo. Jango era o herdeiro do "populismo de Vargas" e isso, para a esquerda, era um anátema.
 
Criou-se uma espécie de visão esquizofrênica que bloqueou de imediato qualquer possibilidade de reação, embora os sinais do golpe fossem visíveis desde o começo do ano. O golpe era indesejável, é certo. Mas livrar-se de um "populista" que poderia entravar o "processo revolucionário" não seria de todo mau.
 
Com isso as esquerdas, em geral, tiveram uma leitura equivocada do golpe, como se ele fosse apenas "mais uma" quartelada latino-americana de pouco fôlego, um tropeço no caminho inflexível da revolução. Além disso, como herança do período do Estado Novo, as esquerdas tiveram sempre um flerte bastante animado com os liberais, os de centro e os de direita. Mas em 64 esses liberais (com as honrosas exceções de dignidade e valor) estavam do lado ou dentro mesmo do golpe, com seus jornais, rádios e tevês emergentes.
 
As esquerdas se viram sós, sem governo, sem pai nem mãe, com um sistema sindical de fato minado pelo populismo e pelegos que queriam na verdade salvar o próprio (pelego) em grande parte dos casos.
 
As forças à esquerda também se dividiram no plano institucional, e logo onde não podiam se dividir: no Rio Grande do Sul. Na eleição para o governo do estado logo após o episódio da Legalidade, o PTB de Brizola e o Movimento Trabalhista Renovador, de Fernando Ferrari, egresso daquele partido, não chegaram a um acordo e concorreram separados. O PTB lançou Egydio Michaelsen, um político de fraco apelo popular. Ferrari tinha ímpeto e era "o homem das mãos limpas", mas ainda não tinha forças para bater ou galvanizar o PTB. Resultado: o governo foi parar nas mãos do conservador Ildo Meneghetti, autor da famosa frase "nenhuma revolução vai se fazer com o meu sangue", para explicar sua inexplicável fuga para Passo Fundo durante o golpe.
 
Houvesse um legalista no governo do estado, seria possível galvanizar a Brigada Militar como em 61, e com Ladário no III* Exército daria para montar um embrião de resistência. Ao contrário, tudo ruiu, e só restou, abrindo novo caminho histórico, a radicalização do movimento estudantil e as dissenções que desaguaram na luta armada.

4) A direita aprendeu tudo em 61 e as esquerdas muito pouco ou quase nada
Este é um argumento muito sério. A batalha de 61 foi ganha no campo das comunicações, apesar da censura sobre ele, imposta no centro do país.
 
Em muitas redações imperava uma fórmula mais ou menos conhecida: uma equipe de esquerda, um diretor de direita. Tais alianças instáveis foram se desfazendo, e a imprensa foi declaradamente para a direita. Nem as esquerdas nem o governo valorizaram devidamente aquilo que lhes levara a neutralizar o golpe em agosto/setembro de 1961.
 
No Brasil o parque de comunicações era emergente, embora ainda distante do ímpeto que ganharia depois do golpe. E nesse parque montou-se uma barragem de fogo cerrado contra o governo. Criou-se um país ameaçado pelo terror de esquerda, insuflaram-se amplos setores da classe média crendeira, que passaram a acreditar que lhe iam tomar de fato os pingüins sobre as geladeiras recém adquiridas e as próprias geladeiras. Houve jornais e jornalistas que resistiram. Mas foi insuficiente. O governo e as esquerdas perderam em 64 onde tinham triunfado três anos antes.

São lições e meditações sobre o passado. Nossas vidas seriam outras, muito outras, se pelo menos houvesse nem que fosse um mero esboço de resistência em 64. Venceríamos? Perdemos por WO, essa é que a verdade difícil de aceitar.

Por Flávio Aguiar.
Enviado por Eri Santos Castro.
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15 de jan. de 2014

Constrangimento capital, por Tarso Genro


Bill Blasio, prefeito de Nova York. Foto: Getty
(*) Publicado originalmente no Leitura Global.
As declarações do Prefeito eleito de Nova York,  Bill Blasio, afirmando que vai  combater as desigualdades sociais da “big apple” cobrando impostos mais elevados dos muito ricos para custear os gastos decorrentes do seu programa de governo, tem causado muita angústia na crônica neoliberal do nosso país.  Afinal, que prefeito é esse que, substituindo uma administração republicana, dinâmica, “moderna” – e mais ainda, dirigida por um “big boss” do capital financeiro – aparece dizendo que os ricos devem pagar mais impostos? Nós, aqui no Brasil, já não demonstramos que falar em aumento de impostos gera perda de “competitividade”?

Talvez a resposta tenha sido oferecida, ainda que de forma involuntária, pelos dados publicados na imprensa tradicional, através de matéria na Folha de São Paulo. A outra face do capitalismo americano, que normalmente não é considerada importante para visitar nos momentos de crise, é bastante amarga: nela, 90% das famílias americanas detém 54% da renda e os outros 10% detém  o resto, ou seja 46%.  Nova York conta com 400 mil milionários, 3 mil multimilionários, mas 21,2% por cento da população está abaixo da linha da pobreza, com 52.OOO pessoas sem domicílio fixo: um número proporcionalmente maior do que a população de rua de Porto Alegre, considerando o número de habitantes de cada uma das cidades.

Este “outro lado” é composto por um pessoal  assalariado de baixa renda, precários, intermitentes, subempregados sem registro – principalmente negros e “chicanos” -  que são os sofredores da crise do modelo industrial do capitalismo pós-guerra, com a destruição das garantias tradicionais da força de trabalho da “big society”.  Ao mesmo tempo, esta  massa de assalariados  empobrecida  ajuda a  compensar  a “queda tendencial da taxa de lucro”, albergando a continuidade da acumulação, agora garantida pela produção de riqueza artificial, através das jogadas no mercado financeiro: os ricos e muito ricos não ficam  sem saída.

Na verdade, a angústia dos neoliberais nativos tem  fundamento. Atualmente há uma disputa ideológica e política permanente no país – às vezes encoberta, outras vezes mais transparente – sobre as funções públicas do Estado, sobre as relações do Estado com a iniciativa privada, sobre o controle público do Estado, sobre o papel da mídia tradicional na formação dos valores do senso comum, sobre a relação do desenvolvimento com a igualdade ou a desigualdade: sobre pobreza e contrastes sociais, geradores de violência e criminalidade. Há um debate de “fundo” sobre um modelo de desenvolvimento que retirou o país do atraso e da estagnação – cumpriu um enorme papel histórico humanizador da sociedade brasileira – e que por ter cumprido seu ciclo precisa esclarecer o seu futuro.

Altvater põe o dedo na moleira: “O mundo globalizado é unificado num  campo de valorização, em termos políticos, econômicos e sociais, bem como culturais e lingüísticos, com a ajuda das diferentes estratégias de apropriação da produção excedente. Podemos assim inferir  que o mundo não se torna apenas uma mercadoria capitalista, e a transformação do mundo em mercadoria só pode ser desfeita mediante o questionamento  do caráter capitalista do mundo.” (Altvaer, “O fim do capitalismo como conhecemos”, Ed. Civ. Bras. Pg. 115).

Como os governos democráticos de esquerda podem interferir neste processo, de molde a “questionar” o capitalismo (a partir do  desenho concreto do capitalismo global), ou seja, questionar a sua legitimação das desigualdades brutais, o fim da proteção social-democrata, o uso de políticas públicas para concentrar renda, “questionar” a naturalização do “apartheid” social, eis a questão estratégica “chave”, no terreno da democracia, para ser resolvida não por fora, mas por dentro da democracia.

A esquerda que não der esta resposta  – e ela é obviamente o modelo de desenvolvimento a ser seguido em cada capitalismo concreto dentro de um território – ficará certamente refém do movimentismo que, em regra, é fracionário ou corporativo. Ou esta esquerda abdicará dos valores da modernidade republicana e embarcará na devoção do mercado, com a desconstituição ainda mais aguda das funções públicas do Estado.
Este impulso contemporâneo, como é sabido,  sequer é originário da Revolução Bolchevique,  vem da Revolução Francesa e foi normatizado processualmente pela social-democracia europeia a partir da Primeira Guerra. A esquerda governante, se for omissa sobre o futuro, ou ficará refém do socialismo utópico  com as suas bravatas de “derrubar o capitalismo” para repartir carências (como já ocorreu em outros sítios históricos) ou irá lentamente cultuar exclusivamente o mercado, como resultou da experiência do PSDB, cujo núcleo dirigente ou é uma extensão do velho DEM ou não sabe o que fazer.

O debate sobre as práticas de governabilidade em nosso país, deformadas pelo sistema político vigente, vem sendo feito à exaustão. Inclusive, a seu modo, com a magnânima colaboração da imprensa tradicional, que nunca perde a oportunidade de reiterar que “tudo isso” começou com Sarney e com o PT. Mas e o resto? Que modelo de desenvolvimento poderá melhorar a vida dos quarenta milhões que passaram à sociedade formal de consumo? E que modelo poderá acabar com a miséria extrema, que não é simplesmente de “bolsões” mas ainda atinge muitos milhões de irmãos nossos?

Ter uma visão clara para dar resposta a estas indagações é o início de uma novo momento da revolução democrática no Brasil. Momento para ser vertido sobre o presente, ou seja, para o período de lutas sociais que ocorrerão nos próximos anos, não nas próxima décadas. Se estas respostas não vierem, a criminalização da política – já em curso pelos grandes meios de comunicação – vai ser sucedida pela criminalização completa dos movimento sociais, com o sucedâneo de um certo “fascismo societal”, cujo apelo à ordem será hegemônico, entre os incluídos de todas as faixas de renda. Não esqueçamos, a ideia do socialismo cresce com a produção de riquezas e com o progresso cultural, a ideia do fascismo cresce com os ressentimentos provenientes dos contrastes, da desigualdade e da marginalização.

Mais além das movimentações sociais, mais amplas ou mais restritas, é hora de organizarmos um grande debate sobre formulações estratégicas para o futuro republicano do país, pois  temos em nosso meio de esquerda pensadores altamente qualificados deste novo ciclo, como Marilena Chauí, Marco Aurélio Garcia, Luiz Gonzaga Belluzo, Flávio Aguiar, Juarez Guimarães, Emir Sader, Giuseppe Cocco, Vladimir Safatle, Amir Kahir, Ladislau Dowbor, Maria Rita Khell e tantos outros que continuaram de esquerda, humanistas e democratas. Mentes que não se renderam ao espetáculo do capital  em “tal grau de acumulação, que se torna imagem” , como dizia já em 1967, Guy Debord, e que encantou outros tantos que preferiram surfar nas asas bem pagas do mercado das ideias ou nos contratos das consultorias tecnocráticas.
Por Tarso Genro, da Mensagem do PT e governador do Rio Grande do Sul.
Enviado por Eri Santos Castro.
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1 de dez. de 2012

A Bíblia segundo Beliel


Em tom de paródia, mas solidamente ancorada nas tradições bíblicas – que Flávio Aguiar, pesquisador e professor de literatura da USP, conhece como poucos –, "A Bíblia segundo Beliel - da Criação ao Fim do Mundo: como tudo de fato aconteceu e vai acontecer" (Boitempo) combina a leveza da chanchada com reflexões profundas e ousadas sobre temas como a religião, o fanatismo, a crença e a descrença, a opressão e a liberdade, a desigualdade e a justiça e, "last but not least", o amor, como objetivo e possibilidade de redenção da humanidade.

ENVIADO POR ERI SANTOS CASTRO.
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