16 de jul. de 2020

Darcy Ribeiro: um homem de fazimentos. Eis um dos meus principais faróis

Quisera a glória de ficar depois de mim, por muito tempo,
cavalgando na memória dos netos do filho que nunca tive.
Permanecer? Mas como? Não sei.
Darcy Ribeiro

EIS UM DOS MEUS PRINCIPAIS FARÓIS

Para uma breve biografia de um condenado à FELICIDADE, cabem algumas impressões babilônicas aos leitores que não são familiarizados com a trajetória de Darcy Ribeiro. O propósito não é analisar seu extenso percurso intelectual e político, mas apenas esboçar o perfil desse antropólogo, político e escritor que se autodenominava um homem de muitos fazimentos.

Mineiro de Montes Claros, Darcy Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922. Em 1939 mudou-se para Belo Horizonte a fim de estudar medicina, mas abandonou o curso depois de constatar sua falta de vocação para a carreira e em 1943 retornou à cidade natal. No ano seguinte, após contato com o sociólogo americano Donald Pierson, que lhe ofereceu uma bolsa de estudos, mudou-se para a capital paulista e matriculou-se na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde se formou em 1946, com especialização em etnologia.

Em 1947 Darcy foi contratado como naturalista pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Nos anos seguintes, viveu longos períodos em comunidades indígenas do sul do Mato Grosso e da floresta amazônica, desenvolvendo estudos etnológicos. Em 1950 publicou seu primeiro livro, Religião e mitologia kadiwéu, que lhe valeu o Prêmio Fábio Prado. Em 1952 assumiu a direção da Seção de Estudos do SPI e por sua iniciativa foi inaugurado no Rio de Janeiro, no ano seguinte, o Museu do Índio, no qual, dois anos depois, organizou o primeiro curso de pós-graduação em antropologia cultural do Brasil.

Darcy Ribeiro ingressou no campo da educação - do qual não mais se afastaria - em meados dos anos 1950, quando também passou a integrar o corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, como responsável por cadeiras de etnologia brasileira. Em 1957 o pedagogo Anísio Teixeira - de quem sofreu forte influência - designou-o para dirigir a divisão de estudos sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), vinculado ao Ministério da Educação. Junto com Anísio, cerrou fileiras em defesa da escola pública, laica e gratuita. Em 1959 foi encarregado, pelo presidente Juscelino Kubitschek - com o qual havia colaborado na definição das diretrizes de seu governo para o setor educacional -, de planejar a Universidade de Brasília (UnB). Em 1961, com a inauguração dessa universidade, foi nomeado seu primeiro reitor.
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Em agosto de 1962 assumiu a chefia do Ministério da Educação do governo João Goulart, compondo o gabinete chefiado pelo então primeiro-ministro Hermes Lima. Em janeiro de 1963, com a volta do país ao regime presidencialista, deixou o ministério e assumiu a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República. O descontentamento de setores conservadores, civis e militares com os rumos do governo levou ao golpe que depôs o presidente em 31 de março de 1964. Darcy deixou o país nos primeiros dias de abril e exilou-se no Uruguai.

De 1964 a 1976, seus 12 anos de exílio, estabeleceu residência em quatro países latino-americanos - Uruguai, Venezuela, Chile e Peru -, nos quais lecionou antropologia e participou de reformas dos sistemas universitários. Em 1971 transferiu-se para o Chile, onde assessorou o presidente Salvador Allende. Em seguida, aceitou convite para colaborar com o governo do general Juan Velasco Alvarado e participar do programa de criação do Centro de Estudos de Participação Popular, resultante de parceria entre o governo peruano e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Em dezembro de 1974, vítima de um câncer pulmonar, Darcy foi autorizado pelo governo brasileiro a voltar ao Brasil para submeter-se a uma cirurgia, e permaneceu seis meses no país antes de retornar ao Peru. Voltou definitivamente em 1976 e, com a Lei de Anistia, de 1979, foi reintegrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em 1980, com a extinção do bipartidarismo, uniu-se a Leonel Brizola na organização do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1982, por esse partido, foi lançado candidato a vice-governador do Rio de Janeiro, na chapa de Brizola. Com a vitória nas urnas, Darcy acumulou o cargo com o de secretário de Ciência e Cultura. Foi, também, encarregado de coordenar o Programa Especial de Educação (PEE), cujo principal objetivo era a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs).

 1986 concorreu ao governo do estado do Rio de Janeiro, perdendo a eleição para Wellington Moreira Franco, candidato do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Em setembro de 1987 foi chamado, pelo governador de São Paulo Orestes Quércia, para colaborar com Oscar Niemeyer na implantação do Memorial da América Latina, inaugurado em janeiro de 1989.

Em outubro de 1990 elegeu-se senador pelo estado do Rio de Janeiro na legenda do PDT. No mesmo pleito Leonel Brizola foi eleito, mais uma vez, governador do estado. Em setembro de 1991 Darcy licenciou-se de sua cadeira no Senado para assumir a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais do governo fluminense, cuja principal meta era promover a retomada da implantação dos CIEPs e coordenar a criação da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em Campos. Voltou ao Senado no final de 1992.

Em 1994 ele ainda concorreria como candidato a vice-presidente da República na chapa encabeçada por Leonel Brizola, do PDT. O resultado das urnas deu à chapa a quinta colocação, entre oito concorrentes. Em dezembro do mesmo ano, Darcy Ribeiro foi internado, no Rio de Janeiro, para tratar de novo câncer em estado avançado, mas cerca de um mês depois deixou o hospital sem ordem médica e instalou-se em sua casa de praia em Maricá (RJ), porque, segundo declarou, precisava refugiar-se para terminar o livro O povo brasileiro, publicado no ano seguinte. Retornou ao Senado em seguida, concentrando suas atividades na elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada em 1996. Durante esse ano, manteve coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo e publicou Diários índios, que recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Hollanda na categoria Ensaio Social.

Mesmo uma apresentação sumária da biografia de Darcy Ribeiro tem que registrar sua atividade como literato. Seu primeiro e mais elogiado romance, Maíra, foi lançado em 1976 e depois traduzido em várias línguas. A ele se seguiram O MuloUtopia selvagem e Migo, paralelamente a tantos outros livros, entre os quais se destacam os seis títulos que compõem os Estudos de Antropologia da Civilização - série encerrada com O povo brasileiro.

Darcy morreu em 17 de fevereiro de 1997, em Brasília, aos 74 anos, mas conviveu cerca de vinte anos com a possibilidade da morte, o que - conforme atestam colaboradores - o levou a imprimir urgência e dedicação total a seus investimentos intelectuais e políticos.2 Além do sentido de urgência na relação com o trabalho, a perspectiva da morte alimentou uma pulsão autobiográfica, expressa nos vários textos em que reviu sua trajetória e se definiu como intelectual e político. A angústia da finitude e o temor do esquecimento são objetos de reflexão em Testemunho, publicado em 1990, em Confissões, que escreveu em 1996 e não chegou a ver publicado, e no romance Migo, de 1988, que classifica como "romance confessional" (Ribeiro, 1997, p.515). Em Migo, lê-se:


Saudades de mim. Saudade de meus idos, dos sidos e dos que deviam ter sido. Compor memórias é tocar ao vivo meus nervos e seus nervos vivos, redivivo, rememorando para pôr aqui, devolvidos, prazeres e dores. Penas e glórias que dormiam abafadas, esquecidas de mim, me voltam, reviscejam. Curto saudade. Saudade de quem? ...
A clara dona, que veio depois de anos de espera, veio e ficou.
Gentes gentílicas que vi, amei, tão completas.
Obras que edifiquei e aí ficarão, testemunhando.
Música, enchendo espaços latifundiários de mim.
Aulas que dei, tantíssimas, esquecidas.
Aquela golfada de sangue no hotel.
A mordida de tubarão que tirou a metade melhor de mim.
Meu medo-pânico de me saber vulnerável, mortal.
A eleição perdida e a glória entrevista.
Esta escritura contraditória.
O que me veio, se foi, só me deixou vazios. Quem veio a mim chegou, partiu. Quem me virá na próxima hora? A hora próxima, haverá? (p.97).
É explícita a vontade de vencer o tempo e o esquecimento, permanecendo na memória das gerações futuras. O desejo de ser lembrado se realizaria pelas obras que edificou e que permaneceriam como testemunho, contrastando com as "tantíssimas" aulas que deu, condenadas ao esquecimento. Darcy seria lembrado por suas obras - ou "fazimentos", como gostava de chamá-las - e não por sua atuação acadêmica.3 Isso, porém, não o deixava confortável.
A despeito de definir-se como homem de ação, lamentava não ser reconhecido como intelectual e homem de ideias: "Temo muito ser recordado no futuro mais por meus empreendimentos que por minhas ideias, o que será uma injustiça" (Ribeiro, 1997, p.521). Nesse trecho, escrito em 1996, quando a proximidade da morte o motivara a escrever suas Confissões - última oportunidade de se definir -, evidencia-se a preocupação com a forma como seria lembrado. Mais do que isso, Darcy expressava o sentimento de impotência quanto à memória que seu nome evocaria quando não mais pudesse assumir o protagonismo da interpretação de si.
Para o lamentado esquecimento como ideólogo contribuiria, sem dúvida, o fato de não ter formado seguidores no campo acadêmico, do qual tinha plena consciência. Ainda que não o explicite em seus textos, ao referir-se à competência e originalidade de grandes nomes das ciências sociais e ao fato de não terem deixado discípulos, parece fundar um seleto grupo de pensadores únicos, cuja independência intelectual estaria associada à impossibilidade de multiplicar-se. Tal grupo, ao qual ele tacitamente parecia filiar-se, é composto por Roquette Pinto, Curt Nimuendajú, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Manuel Bonfim, Capistrano de Abreu e Josué de Castro.4 O único cientista social brasileiro que deixou discípulos e mereceu a deferência de Darcy em seus livros de memórias foi Florestan Fernandes, contemporâneo e militante esquerdista como ele, cuja reconstituição do viver tupinambá Darcy admirava. Seus maiores elogios foram endereçados, porém, a Gilberto Freyre, o único cientista social moderno, no Brasil, que o teria empolgado e cuja característica mais admirável seria, justamente, a independência, o "rechaço a pais teóricos" (Ribeiro, 2001, p.36).
A preocupação com a permanência ganha, portanto, em Darcy, contornos complexos: como garantir que a sua memória fosse preservada fazendo jus a sua trajetória, se não tivera filhos nem deixava discípulos? Como garantir que fosse lembrado, pelas gerações vindouras, como homem de ideias e ação? Movido por essas questões, ao mesmo tempo que escrevia suas memórias e tocava seus últimos projetos, deu início ao fazimento, cuja missão precípua era fazer-se permanecer.


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