14 de jul. de 2008

O doutor Guillotin, a guilhotina e a pena de morte

Recentemente, a Anistia Internacional divulgou um relatório com um balanço da situação da pena de morte no mundo no ano passado. Segundo números oficiais, em 2007, a cada semana, 24 pessoas foram executadas e um total de 64 foram condenadas à morte. No total, 1.252 pessoas foram executadas em 24 países e 3.347 condenadas à pena capital em 51 países. Na China, país sede dos Jogos Olímpicos este ano e campeão da pena de morte, a organização estima em 470 o número de execuções em 2007 (nove por semana) e 1.860 condenações. Em segundo lugar vem o Irã (317 execuções), seguido da Arábia Saudita (143), Paquistão (135) e Estados Unidos (42). Os cinco respondem por 88% de todas as execuções das quais se tem notícia.
Ao ler os dados divulgados pela Anistia, lembrei-me de um curioso personagem francês, cuja trajetória é pouco conhecida. Trata-se de Joseph-Ignace Guillotin (1738-1814), de quem este ano se comemora o 270° aniversário de nascimento.


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A guilhotina passou por seu primeiro teste de qualidade na França na manhã de 15 de abril de 1792. Às 10h, o mortal instrumento foi montado, em Paris, no pátio do hospício Bicêtre, transformado em presídio para os inimigos da Revolução Francesa. Dessa vez, no lugar de ovelhas vivas, as cobaias seriam cadáveres humanos. A pesada e afiada lâmina separou, a cada vez, cabeça e tronco de três defuntos, comprovando sua eficácia diante de uma platéia de notáveis da Assembléia Nacional. Das janelas de suas celas, curiosos prisioneiros também assistiram à inusitada performance: "É o famoso projeto de igualdade, todo mundo morrerá da mesma maneira", disse um deles, segundo as crônicas da época. "É o nivelamento", acrescentou outro. Entusiasmado, o carrasco Charles-Henri Sanson, habituado a execuções bem mais penosas, exclamou: "Bela invenção! Tomara que não se abuse de sua facilidade!".
A predição do verdugo, infelizmente, se confirmaria. A primeira execução pública com o uso da guilhotina ocorreu dez dias depois, na quarta-feira 25 de abril, mesma data em que Rouget de Lisle interpretava, em Estrasburgo, o Canto de Guerra para o Exército do Reno, mais tarde rebatizado de A Marselhesa, que se tornaria o hino nacional francês. O primeiro guilhotinado da história foi o ladrão Nicolas-Jacques Pelletier, por roubo e assassinato com faca. No dia seguinte, o jornal La Chronique de Paris imprimiu seu veredicto sobre a nova máquina: "Ela não mancha a mão de um homem da morte de seu semelhante, e a prontidão com a qual abate o culpado está mais de acordo com o espírito da lei, que pode muitas vezes ser severa, mas que não deve jamais ser cruel".
Em pouco tempo, 50 guilhotinas instaladas nos 83 departamentos franceses funcionavam até seis horas por dia. No início de 1794, apenas em Paris, cerca de 20 mil condenados tiveram suas cabeças decepadas, entre eles, o líder revolucionário Danton. Na proclamação do Grande Terror, ponto culminante do período repressivo da Revolução Francesa, o Tribunal Revolucionário listou 1.376 execuções. Ironia da história, o próprio rei Luís 16 ignorava quando sancionou a lei instituindo o uso da guilhotina no país, em 25 de março de 1792, que em menos de um ano também viria a ser uma de suas vítimas.
Não faltaram tentativas de se criar variações do invento para serem vendidas ao Estado, caso de uma engenhosa e fracassada guilhotina pretensamente capaz de cortar nove cabeças de uma só vez. O "mecanismo sepulcral", assim definido por Chateubriand, se torna mesmo um efeito de moda, reproduzido, em modelo reduzido, em madeira ou marfim, e adornado em detalhes de ouro e prata. Miniaturas feitas de madeira de mogno eram vendidas em Paris no Palais-Royal, renomeado Palais-Egalité. Crianças recebiam guilhotinas de brinquedo como presente. Os revolucionários passaram a adotá-la como carimbo, enquanto os aristocratas se divertiam com pequeninas guilhotinas usadas para decapitar bonecos travestidos de Danton ou de Robespierre.
Na origem do macabro instrumento, no entanto, estão os sentimentos nobres do deputado e médico Joseph-Ignace Guillotin. Horrificado pelo destino reservado aos condenados à morte da época, o humanitário médico colocou sua cabeça a funcionar para reduzir ou eliminar os sofrimentos das vítimas. É o que procura provar o historiador Henri Pigaillem na sua biografia sobre o doutor Guillotin, "Le Docteur Guillotin" (ed. Pygmalion), que leva o subtítulo "benfeitor da humanidade". Até os 25 anos, o jovem Joseph-Ignace seguiu a tradição familiar e as vontades de seu pai e cursou teologia na Sociedade de Jesus, fundada por Ignácio de Loyola, em Bordeaux. No início de 1763, no entanto, abandonou os estudos religiosos para desenvolver a sua verdadeira vocação: a medicina. Guillotin era fascinado pelas descobertas científicas e, principalmente, pelos progressos da "arte de curar". Durante quatro anos, estudou na faculdade de medicina da cidade Reims, reconhecida pelo desenvolvimentos de técnicas inovadoras em cirurgia e anatomia. Ao mesmo tempo, trabalhou como assistente em hospícios, estabelecimentos que acolhiam crianças abandonadas, idosos, indigentes e deficientes mentais. Sua formação foi completada com cinco anos de estudos na prestigiada faculdade de medicina de Paris. Coberto de títulos, se tornou professor da faculdade e, a partir de 1771, um dos médicos mais reputados da capital. Cobrava caro as consultas em seu consultório na rua de la Bûcherie, mas, fiel aos seus preceitos humanitários, dava atendimento gratuito aos pobres na paróquia de Saint-Séverin.
Em 1788, um ano antes da Revolução Francesa, Luís 16 havia suprimido a chamada "tortura prévia", utilizada para obter confissões ou delações dos acusados, mas conservado as penas desiguais para delitos de mesma natureza. Um nobre podia escolher entre a morte pela espada ou pelo machado. Já o cidadão comum agonizava em uma roda e, após ser "rompido vivo", morria na forca ou esquartejado. O falsificador de moedas era jogado em uma caldeira fervente e o herético queimado vivo na fogueira.
Em outubro de 1789, nos debates sobre a reforma do código penal na Assembléia Nacional, o doutor Guillotin apresentou uma série de "artigos filantrópicos" na busca da igualdade dos homens perante a lei. No primeiro deles, propunha que todos os delitos do mesmo gênero fossem punidos com a mesma pena, não importasse o status do culpado. No último artigo, estipulava, nos casos de pena de morte, um só suplício para todos os condenados: a decapitação, "praticada pelo efeito de um simples mecanismo". Os deputados riram de suas propostas. Muitos deles mal sabiam que, mais tarde, experimentariam eles mesmos a lâmina do fatal instrumento. Mesmo apoiado pelo médico e filósofo George Cabanis, os argumentos do doutor não convenceram o plenário e a discussão foi adiada.
Revoltado pela barbárie das execuções, o doutor Guillotin não desistiu da missão de acabar com o sofrimento e com o triste espetáculo de corpos torturados em praça pública. No ano seguinte, em 21 de janeiro de 1790, ao voltar a defender da tribuna o seu projeto, lançou: "Senhores, com minha máquina, lhes arrancarei a cabeça em um piscar de olhos, e vocês não sofrerão. O mecanismo cai como um raio, a cabeça voa, o sangue jorra, e o homem já não existe". O jornal Le Moniteur tomou o seu partido: A inovação de colocar a mecânica no lugar de um executor, que, como a lei, separa a sentença do juiz, é digna dos séculos em que vamos viver e da nova ordem em que estamos entrando", vaticinou.
Em de 3 de maio de 1791, o deputado Louis-Michel Le Peletier de Saint-Fargeau, relator do Comitê de Legislação Criminal, vai mesmo além ao pedir à Assembléia Constituinte a abolição pura e simples da pena de morte. "Não é no século 18 que devemos consagrar um erro de séculos precedentes!", exclamou. O grupo dos abolicionistas, no entanto, terá sua proposta rejeitada por ampla maioria. Mas no rastro dessa derrota prospera o debate sobre como tornar a pena de morte menos sofrível e vence a idéia de que "todo condenado à morte terá a cabeça cortada".
Pigaillem mostra que o "simples mecanismo" já existia e foi apenas aperfeiçoado por Guillotin. Sua primeira inspiração teria surgido ao se deparar com uma gravura do século 16, do alemão Albrecht Dürer, na qual o ditador romano Tito Mânlio decapita seu próprio filho com um aparelho semelhante a uma guilhotina. Outras obras, entre elas uma gravura de 1555 do italiano Achille Bocchi, também representavam instrumentos similares. Na Idade Média, aparelhos "corta-cabeças" funcionaram na Alemanha, chamados de Diele. A partir do século 16, surgem máquinas mais aperfeiçoadas, com os nomes de Halifax-Gibet (Inglaterra) e Maiden (Escócia), que darão origem à guilhotina francesa. Diversos testemunhos de época revelam, portanto, que a guilhotina não foi uma invenção por inteira do doutor Guillotin e nem uma criação da Revolução. Mesmo que tenha participado do esboço do primeiro croquis, Guillotin não acompanhou a construção propriamente dita da máquina que portará seu nome. A imprensa francesa da época não poupou o doutor de críticas e se encarregou de batizar o instrumento de morte de "guilhotina" antes mesmo de sua adoção oficial. Guillotin, no entanto, se felicitava por ter eliminado a dor do suplício e criado a igualdade diante da morte.
Definido como um homem laborioso, austero, tímido, devotado, casto e honesto, defensor da justeza da formação e da prática da medicina, o doutor Guillotin faleceu na indiferença geral, aos 76 anos, e no desgosto pelo uso abusado de sua criação. "Ele quis acabar com o sofrimento dos condenados à morte e jamais imaginou que passaria aos olhos do povo por um criminoso sádico em vez de um benfeitor da humanidade. Vítima da opinião pública, se tornou para sempre o padrinho da horrível máquina", escreve Pigaillem. Na leitura do panegírico fúnebre, o médico e amigo Edmond-Claude Bourru salientou: "Infelizmente, para nosso colega, sua moção filantrópica deu lugar a um instrumento ao qual o vulgar aplicou seu nome: prova de que é difícil fazer o bem aos homens sem que isso resulte em algum desagrado para si". Vide os versos populares da época: "Ô toi charmante guillotine/ Tu raccourcis reines et rois./ Par ton affluence divine/ Nous avons reconquis nos droits" (Ô tu, charmosa guilhotina/ Tu diminuis rainhas e reis./ Por tua afluência divina/ Nós reconquistamos nossos direitos).
A filantropia, como se nota, pode se tornar um esporte perigoso. Como escreveu Victor Hugo, em "O Último Dia de um Condenado" (1829): "Que os criminalistas mais teimosos se cuidem, desde um século a pena de morte se enfraquece. Ela se faz quase suave. Sinal de decrepitude. Sinal de fraqueza. Sinal de morte próxima. A tortura desapareceu. A roda desapareceu. A forca desapareceu. Coisa estranha!, a própria guilhotina é um progresso. O senhor Guillotin era um filantropo".


O fim da guilhotina e da pena de morte na França
"Vocês vão cortar vivo esse homem em dois?". Com a voz grave e eloqüente, o indicador apontado em seqüência para a face de cada um dos jurados, Robert Badinter procurava salvar a vida de seu cliente, Patrick Henry, 23 anos, julgado pelo seqüestro e morte de um menino de 8 anos. No derradeiro intento de poupar o réu da pena capital, naquele janeiro de 1977, o advogado de defesa acrescentou: "Chegará o dia em que a pena de morte será abolida, e então vocês dirão aos seus filhos que mataram um homem. E vocês verão seus olhares". O discurso surtiu efeito: apesar das pressões das ruas, o acusado escapou da guilhotina e foi condenado à prisão perpétua.
Anos mais tarde, em 9 de outubro de 1981, o Diário Oficial da República publicava o decreto de abolição da pena de morte na França, assinado pelo então presidente François Mitterrand. Uma vitória de seu ministro da Justiça, empossado quatro meses antes: Robert Badinter. A cruzada, finalmente, terminara.
Antes de entrar para a História como o homem que extinguiu a pena de morte no país da guilhotina, Robert Badinter sentiu o amargo gosto da sentença. Em junho de 1972, todo o seu esforço para poupar do suplício Roger Bontems, condenado por crime de assassinato, foi inútil. Depois da recusa da graça presidencial por parte de Georges Pompidou, Badinter acompanhou, na madrugada agendada, o preso desenganado no percurso até o mórbido altar. Lá, assistiu ao carrasco soltar a pesada lâmina, projetada para, num átimo, separar cabeça e tronco. "Depois daquele dia, nunca mais fui o mesmo. E, sobretudo, nunca mais encarei a Justiça da mesma maneira", disse. Depois daquele dia, seu inimigo número um fora eleito: a pena de morte. Para combatê-la, fez uso da arma com a qual goza de perfeita intimidade: a palavra.
Nos meses seguintes à derrota que lhe foi infligida no tribunal, Badinter despejou em 230 páginas um relato solitário, cru e humano do trágico embate contra o veredicto fatal. O resultado foi o livro A Execução. Era apenas o começo, como lhe havia prevenido o cardeal Lustiger, arcebispo de Paris: "No futuro, quando a abolição da pena de morte impedir a execução do autor de um crime abominável, será você que, no inconsciente coletivo, tomará o lugar do assassino".
Como ministro, Robert Badinter recebeu torrentes de cartas de ameaças de morte a sua família. Diante de sua casa, assistiu a manifestações pedindo sua demissão. Mas nunca capitulou.