2 de jun. de 2015

Mais Lincoln, menos Robespierre

Por Tarso Genro
As grandes transformações ocorridas na humanidade, no período que sucedeu a Revolução Francesa e a Revolução Americana  – guerras, “gulags”, revoluções, genocídios, assassinatos em massa, ocupações territoriais, golpes de Estado – estão sempre lançando uma sombra de pessimismo sobre o futuro.  É o que gerou aquilo que o sardo genial, Antonio Gramsci, chamou de “o pessimismo da inteligência”, aforismo acompanhado por grandes nomes da cultura republicana e democrática da Itália. Norberto Bobbio, por exemplo,  voltou  a sua obra jurídica  fundamentalmente para a garantia institucional das liberdades, para equilibrá-las com a  realização da Justiça. Não era socialista, como eu sou -por exemplo- mas tinha os mesmos propósitos, dentro da sua visão normativa do mundo.
Um livro de Bruna Peyrot  (“La cittadinanza Interiore“, 2006, Città Aperta Edizioni), lastimavelmente ainda não publicado no Brasil, alerta  -ao meu ver de forma totalmente correta-  que dois ensinamentos são imprescindíveis para uma educação democrática, voltada para um melhor futuro desta nave humana que percorre  o infinito, quem sabe sem destino: o ensinamento da história “não violenta do mundo”  e a interculturalidade. É claro que estes ensinamentos não criarão obstáculos imediatos às próximas guerras, nem eliminarão as violências imediatas. Mas, quem sabe  -se a nave humana tiver algum destino e durar mais alguns séculos-  os nossos descendentes possam viver em paz, numa sociedade mais harmônica, mais igual, mais justa, como queriam Antonio Gramsci e Norberto Bobbio, ainda que com extrações filosóficas diferentes.
Lincoln foi Presidente dos Estados Unidos durante a Guerra da Secessão, que ele tentou evitar. Esta guerra, que decidiu os destinos do escravismo americano, assediado pelas ideias iluministas da igualdade e pela necessidade de liberação do trabalho livre para a indústria  (na “segunda onda” da industrialização), propiciou aos Estados Unidos o estatuto de grande potência mundial capitalista. Para o bem e para o mal. A barbárie da Guerra da Secessão não terminou com o preconceito nem eliminou a discriminação institucional, de caráter racial. Na década de 60,  vários estados americanos do sul,  ainda adotavam a filosofia do “apartheid”, com a tese cínica do “iguais mas separados”.  Era uma discriminação,  apoiada em leis estaduais, que só teve a sua varrição final, a partir das lutas pelos direitos civis e por decisões das Cortes americanas,  que atravessaram os anos 60.
Lincoln perdera sua cadeira de Senador em 1855 e, em 1858, quando tentava  recuperá-la, passa a enfrentar seu grande desafeto, Stephen Douglas, juiz reacionário escravista, que tinha a habilidade de usar a teoria da “soberania popular”  – fundada ali apenas nos votos dos brancos americanos-  para apontar a escravidão como “produto da democracia”, ainda que erguida sobre restrições raciais. Lincoln acusa Douglas de “doutrinar e moldar a opinião pública a não se importar se a escravidão for aprovada e rejeitada”, e desafia Douglas para uma série de debates públicos. Este, depois de uma certa vacilação, aceita o desafio  e os debates são realizados, entre agosto e outubro daquele ano de 1858.  Depois de sete deles, Douglas tinha todos os motivos “para se arrepender da sua decisão”, pois Lincoln, que era um humanista vinculado ao seu tempo  -com todas as moderações que a política lhe exigia para ser maioria-  convence que,  “no direito a comer seu próprio pão, produzido por seu próprio esforço, sem precisar permissão de ninguém, ele (o negro) é igual a mim, aos Juiz  Douglas e a qualquer pessoa vivente” e que o negro deveria ser abrigado em todos os direitos básicos da Declaração de Independência. Marx, mais tarde, escreve uma carta a Lincoln, soldando uma relação histórica entre este dois grandes humanistas que, em lugares distantes e em processos históricos diferentes, lutam naquele momento pelos mesmo ideais.
Lincoln tem mais votos, mas não consegue a sua desejada indicação ao Senado. Funcionam aqueles mecanismos seletivos, que só as democracias restritas sabem inventar, semelhantes ao sistema inglês, onde a preferência da maioria dos eleitores não quer dizer vitória eleitoral, nem governo de maioria. Mas Lincoln tentou, através do debate,  evitar aquilo que foi a mais dura Guerra Civil das Américas. Quem sabe inevitável, talvez situação  impossível de ser revertida em pactos democráticos de paz, nas condições históricas que abriam escassos corredores de diálogo fora da violência militar, que se seguiu. Mas ficou o exemplo de Lincoln: derrotar Douglas pelos argumentos,  para convencer a maioria dos americanos  que era uma ignomínia “uma raça de homens defende(r) a escravidão de outra raça”, o que,  segundo Lincoln, teria origem no mesmo princípio de tirania do direito divino dos reis, não no direito novo dos homens civilizados.
Independentemente das motivações, mais,  ou menos generosas, que tem todas as formações políticas, as barbáries, as violências e as injustiças na humanidade, são cometidas por todas as partes, em todos os regimes. Ou fugindo do controle dos seus líderes, ou porque a violência e o assassinato estão no DNA das ideias reitoras destas formações políticas. Nelas  o nazismo, o fascismo, os “pol-pots” são  -menos do que ideologias-   refúgios da insanidade e  do recalque, cujos objetivos programáticos são substituídos por  patologias, que ora buscam os judeus, ora os comunistas, ora os simplesmente diferentes. Para atacar fisicamente ou caluniar.  O juiz Douglas, racista e reacionário, pelo menos aceitou o debate e se submeteu ao contencioso político, diferentemente  do ideal de todo o carrasco nazista nos campos de concentração, que  era assassinar uma pessoa que fosse judeu, comunista e homossexual, reunindo, num só ato de barbárie, raça, política e condição sexual.
No momento em que entrevistas de líderes de esquerda são interrompidas por pessoas organizadas, no estilo das SS de Hitler ( fundada em 1921, como “tropa de choque” da sua ação política nacional), que deputados de esquerda são ameaçados de morte “nas redes”,  e a  caminhada de uma deputada  -pacífica e durante o período eleitoral-  é atacada por turbas  irracionais; neste momento  em que o próprio PSDB é apontado como “traidor” da democracia por estes grupos organizados  -partido de oposição ao Governo que governou dentro da democracia  e ajudou a consolidá-la-;  no momento em que a grande imprensa trata isso com “normalidade” e  sem o menor senso crítico, penso que algo de extraordinário está ocorrendo no projeto democrático da Carta de 88. E é algo grave. Se é verdade que a democracia vive de conflitos e acordos, ela também se funda em repulsas radicais e a repulsa mais importante na democracia é a repulsa à obstrução da palavra, como está ocorrendo neste exato momento.
Penso que se tivéssemos que optar por alguma figura paradigmática da modernidade, neste tempo confuso  -onde o udenismo pós-moderno começa a deixar de conviver com o conservadorismo dos ricos e famosos –  deveríamos optar por Lincoln, não por Robespierre. Quem quer “sanear” a democracia, neste momento, na verdade são os que  – repito sempre que possível-  acham “linda” a sentença de Mussolini,  após a marcha sobre Roma: ” a ação enterrou a filosofia”.  Diria, agora, que é preciso achar os Douglas do lado de lá, dispostos ao debate, não à violência sectária e ao ódio de classe. Isso pode salvar a democracia, cujas crises começam sempre com os revides, partam de onde partirem,  e com a violência fora da lei.
Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Enviado por Eri Santos Castro.
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