A reforma política virou protagonista nas eleições de 2014.
Mais de um ano após as “Jornadas de Junho”, as suas ressonâncias ainda são
facilmente sentidas. E as teorias sobre a sua dimensão para a história do
Brasil ganham força à medida em que discursos que relembram as reivindicações
da época, como o de Luciana Genro (PSOL), recebem mais espaço no debate
público.
“Só a sociedade irá fazer com que as reformas necessárias
aconteçam”, diz Marcos Nobre, professor de Filosofia da Unicamp e pesquisador
do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). “São as pessoas que
precisam obrigar o sistema político a mudar, porque, por conta própria, ele não
irá fazer isso”, sentenciou.
Para ele, as vozes das ruas podem, a médio prazo, promover
uma mudança na homogeneização da classe política, pouco ou nada interessada em
estabelecer posições antagônicas e contrastantes para resolver os problemas que
se apresentam. A esse comportamento, Nobre deu o nome de “pemedebismo”, uma
espécie de cultura conservadora que caracteriza o sistema político brasileiro
desde o início do seu processo de redemocratização.
Nesta entrevista – concedida ao jornalista Gustavo Carratte
-, o autor do livro “Imobilismo em movimento – Da abertura democrática ao
governo Dilma” e do e-book “Choque de democracia – Razões da Revolta” fala
sobre os significados de Junho de 2013; o momento em que o PT, apesar de suas
notáveis diferenças ideológicas, aceitou entrar no jogo da governabilidade; e
os cenários que se apresentam como possíveis em um futuro próximo.
Diário do Centro do Mundo – Por que as manifestações de
junho de 2013 foram tão importantes?
Marcos Nobre – Junho de 2013 foi um marco porque, para mim,
trata-se do final do processo de redemocratização do Brasil. A partir daquele
mês, não está mais em causa a criação das instituições democráticas, como
aconteceu na década de 80, nem a consolidação destas instituições, como vinha
acontecendo desde meados de 1990. Em junho de 2013, o que passa a estar em
questão é como as instituições democráticas do Brasil devem funcionar. Deixa de
existir um período de transição, de redemocratização, e começa a haver um
processo de aprofundamento desta democracia. É um outro patamar de discussão.
E qual é a dimensão disso, historicamente?
A dimensão histórica é muito grande porque, além de tudo o
que pode ser discutido sobre essa nova fase, também é algo inédito. A nossa
redemocratização durou cerca de 33 anos, a grosso modo, se levarmos em conta a
aprovação da lei do pluripartidarismo, no final de 1979, até as manifestações
de 2013. Antes disso, o nosso período democrático não foi mais do que um curto
verão, de menos de 20 anos, da Constituição de 1946 até o Golpe Militar de
1964. Não houve sequer tempo de consolidar a democracia, de deixá-la se
estabelecer devidamente. Quer dizer, pela primeira vez nós temos mais de três
décadas de democracia – ainda pouco democrática, mas ainda assim uma democracia
– e, mais do que isso, o seu aprofundamento. As Revoltas de Junho iniciam um
longo ciclo na história deste país.
A maior parte de sua explicação para essa “nova fase
democrática”, certamente, está na maior conscientização da população. A falta
de unidade que passou a existir nas manifestações após poucos dias de seu
início – não apenas com a multiplicação de pautas, mas às vezes até com a
ausência delas em alguns protestos – não enfraquece essa teoria?
Realmente, a proporção que as manifestações tomaram não teve ligação direta com o estopim, que foram as ações do Movimento Passe Livre e, em algumas cidades, os protestos contra os gastos da Copa. Mas, por outro lado, existe um traço de união entre todas as reivindicações, que é justamente a rejeição à maneira como funciona o sistema político no Brasil. Isso não transforma as Revoltas de Junho em uma unidade clara e bem definida, mas é um elemento importante, que fornece algum traço de união a tudo o que aconteceu. É daí que nasce a ideia de fim do processo de redemocratização do país.
Realmente, a proporção que as manifestações tomaram não teve ligação direta com o estopim, que foram as ações do Movimento Passe Livre e, em algumas cidades, os protestos contra os gastos da Copa. Mas, por outro lado, existe um traço de união entre todas as reivindicações, que é justamente a rejeição à maneira como funciona o sistema político no Brasil. Isso não transforma as Revoltas de Junho em uma unidade clara e bem definida, mas é um elemento importante, que fornece algum traço de união a tudo o que aconteceu. É daí que nasce a ideia de fim do processo de redemocratização do país.
Até o dia 13, o apoio às manifestações ainda não era
majoritário na população. A partir dali, quando ocorreu o ápice da repressão
policial, a mídia tradicional não conseguiu mais insistir no discurso de que
quem estava nas ruas eram apenas vândalos tentando destruir o patrimônio
público. O que explica essa mudança de comportamento repentina, e qual foi o
papel disso para que o movimento crescesse tanto?
Eu penso que o que aconteceu ali não foi uma simples
“mudança tática”, de criticar a repressão por ter tido repórteres que a
sofreram na pele ou de tirar proveito eleitoral daquilo. Foi muito mais
profundo do que isso. Naquele momento, ficou claro para a grande mídia
tradicional que, ao longo dos anos 2000, houve uma revolução que tem como
consequência natural a queda do monopólio na hora de formar a opinião da
população. Antes as pessoas tinham a oportunidade de ser contra ou a favor
determinada reportagem, mas agora, com a internet, elas têm não apenas uma
série de fontes de informação alternativas, mas também o poder de debater
publicamente, com blogs próprios, redes sociais, janelas de comentários e tudo
mais. Isso traz uma mentalidade democrática, uma maneira de ver o debate
político, que até então não existia. Os veículos que compõem a mídia
tradicional continuam importantes, mas agora são “um” elemento, e não mais “o”
elemento.
E a repressão policial?
Foi um fator muito relevante, porque a polícia é o último
braço do sistema político. O pensamento é mais ou menos assim: “A gente já se
sente impotente para modificar, de fato, a estrutura política, e aí quando são
feitas manifestações absolutamente legítimas, que reclamam dos preços abusivos
do transporte público por uma péssima qualidade de serviço, vocês ainda mandam
a polícia?”. Então aí eclode mesmo, porque o grau de desfaçatez já passa a ser
inaceitável. A polícia entrou na agenda deste país e, enquanto não se tornar
mais democrática, não vai sair. A polícia precisa ter clareza de que a sua concepção
não é bélica, e que está ali para proteger os direitos das pessoas, não para
tirá-los delas em nome do “combate ao crime”.
Essa sensação de impotência perante o sistema político
nasce da sua conjuntura atual, por você chamada de “pemedebismo”?
Nem tão atual assim. Na época do impeachment do Collor, em
1992, o sistema político criou a explicação de que aquilo aconteceu não porque
“ele não tinha apoio no Congresso”, mas porque “ele não tinha uma supermaioria”
– superblocos parlamentares, gigantescos, o que também pode ser interpretado
como a segunda figura do Centrão, da década anterior. A grande mídia teve um
papel decisivo para convencer a sociedade de que aquela explicação era
plausível, e assim, evidentemente, cria-se uma enorme pasteurização do sistema
político.
Quais são as características fundamentais do pemedebismo?
São muitas, mas a principal delas é o acordo da
governabilidade. Quem está no poder, se não quiser ser alvo de um monte de
cotoveladas durante o trajeto que irá percorrer para aprovar uma proposta
qualquer, precisa ter uma supermaioria a seu favor. Esse enorme bloco acaba por
reproduzir os seus grupos e as suas máquinas dentro do Estado, e aí o projeto
de blindar o sistema político contra a sociedade é alcançado.
O pemedebismo não é a flexibilização ideológica, então,
mas a quase ausência de qualquer ideologia em prol de um sistema político longe
do alcance da sociedade?
A impressão é que sim. Prefiro me referir a isso como
“condomínio pemedebista”, porque “presidencialismo de coalização” passa a ideia
de que realmente há partidos que se unem por um objetivo comum, e não é isso o
que acontece. O PP (Partido Progressista), por exemplo, que é um ordeiro do
partido que sustentou a Ditadura Militar, está no atual condomínio do governo.
Quer dizer, que país é esse?
Hoje, não há uma real oposição para o governo federal?
Ela existe, é claro. Residualmente existem membros que fazem
oposição ideológica. Mas o que quero dizer é que, na imensa maioria do bloco de
oposição, não há a vontade de mudar o sistema político. O que existe, apenas, é
a vontade de se tornar o síndico da vez deste enorme condomínio. As
manifestações de junho, embora tenham tido alguma generalização abstrata – do
tipo “somos a favor da saúde, da educação, da segurança, da paz e da felicidade
no mundo” – podem trazer a médio prazo uma mudança nesta homogeneização da
classe política. Talvez fique claro que há a necessidade de posições
antagônicas e contrastantes para resolver os problemas que as pessoas colocaram
nas ruas.
Quando Lula assumiu, pelo menos, essa situação era
diferente. O que aconteceu no meio do caminho para o PT aceitar esse jogo?
O Mensalão – que é a contraprova do que estou querendo dizer
a respeito deste acordo de governabilidade. Quando Lula assume, passa a existir
o primeiro governo de minoria desde o Collor. E ele está lá, negociando,
aprovando a reforma da previdência com o apoio da oposição, passando uma outra
lei qualquer com o apoio da oposição, e assim vai. Quando o Mensalão aparece, o
fantasma do impeachment vem junto. Naquele instante é decidida a adesão ao
acordo de governabilidade, até então veementemente recusado, apesar das
pressões constantes de todos os lados.
O PT falhou nesta tarefa de reformar o sistema político,
ou ainda é cedo para dizer?
Ele foi eleito, basicamente, com duas missões: a primeira era essa, de reformar radicalmente o sistema político; e a segunda era diminuir as desigualdades sociais do país. Depois do Mensalão, o PT virou-se para a parcela organizada da sociedade que o apoiava e disse: “Olha, não é possível fazer as duas coisas. Eu vou ter de fazer um pacto com esse sistema político tal qual ele funciona, para, assim, poder diminuir a desigualdade”. E assim o fez.
Ele foi eleito, basicamente, com duas missões: a primeira era essa, de reformar radicalmente o sistema político; e a segunda era diminuir as desigualdades sociais do país. Depois do Mensalão, o PT virou-se para a parcela organizada da sociedade que o apoiava e disse: “Olha, não é possível fazer as duas coisas. Eu vou ter de fazer um pacto com esse sistema político tal qual ele funciona, para, assim, poder diminuir a desigualdade”. E assim o fez.
A reforma política é viável?
Quando se fala em reforma política no Brasil, está se
falando em reforma eleitoral. Talvez melhore um pouco, mas mudar a forma de
eleição não é algo que irá reestruturar, de fato, todo o sistema. Por que são
necessários 400 deputados para governar? Por que são necessários 60 senadores?
Nem vou discutir o número de ministérios – porque podem ter 50, desde que eles
funcionem -, mas atualmente só existem 39 porque você tem uma base de apoio
gigantesca e precisa acomodar a todos. Para existir uma reforma verdadeira, o
que precisa acabar é a cultura da supermaioria. E só a sociedade irá fazer com
que essas reformas aconteçam. As pessoas precisam obrigar o sistema político a
mudar, porque, por conta própria, ele não irá fazer isso.
Em que medida a transição suave que o Brasil teve entre a
ditadura e o início do seu processo de redemocratização influencia o
pemedebismo de hoje?
A ligação entre essas duas coisas é total. Após a ditadura,
a forma que o conservadorismo encontrou para promover uma transição lenta e
paquidérmica foi o progressismo, com aquela “união de todos que eram contra a
ditadura e a favor da democracia” – e neste grupo estão, inclusive, aqueles que
apoiavam a ditadura até pouco antes do barco afundar, que saíram com ele já
naufragando. Hoje, temos a segunda figura desta unidade forçada. São maneiras
de controlar a democratização da sociedade. É o conservadorismo em sua versão
democrática.
Quais são os cenários que se apresentam como alternativas
ao pemedebismo?
Acredito que há dois caminhos possíveis. O primeiro
aconteceria se o sistema político conseguisse pelo menos se repolarizar,
voltando a ter situação e oposição devido aos seus posicionamentos ideológicos,
assim como era durante o governo FHC, com o PT e seus aliados históricos
fazendo oposição e deixando isso claro a todo instante. Essa opção não teria
força para reformar o cenário radicalmente, mas já seria alguma coisa. E o
segundo, um pouco mais próximo do que seremos quando passarmos pela reforma,
seria com plataformas políticas que não fossem baseadas na produção de supermaiorias.
É possível ter uma maioria, simplesmente, e por meio desta maioria, formada por
motivos ideológicos, tentar transformar o país com embates de verdade.
É possível imaginar que, em vez de aceitar a necessária e
clamada reforma, o sistema político encontre uma nova maneira de suavizar essas
mudanças, mantendo as suas estruturas intactas?
É possível. Daqui a dez anos, em uma nova conversa, talvez o
assunto seja uma terceira figura do conservadorismo em tempos democráticos. Não
acho que seja isso, mas é uma possibilidade. O que espero é que o pemedebismo
seja característico da redemocratização, e que ele tenha ficado para trás. O
Brasil precisa de uma revolução do que é o seu sistema político, e não de uma
mutação do que ele é hoje.
Enviado por Eri Santos Castro.
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