19 de nov. de 2007

Mr. Eric Hobsbawn e o século XX e de passagem Ítalo Calvino

Estou foleando a auto-biografia do maior historiador do mundo:Eric Hobsbawn.
Se me perguntassem o que levou esse homem a radiografar o século passado, eu reproduziria o trecho que ele selecionou do Ítalo Calvino de Cidades Invisíveis. Trata-se de uma fala do Marco Pólo: "O inferno dos vivos não é algo que vai existir: se existe, já está aqui, o inferno da nossa vida cotidiana, formado pelo fato de vivermos juntos. Há duas formas de suportá-lo. A primeira é a que muitos acham fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até não o ver mais. A segunda é arriscada e exige constante atenção e aprendizado: no meio do inferno procurar e saber reconhecer o que não é inferno, fazê-lo durar, dar-lhe espaço".
Ou então eu o citaria, textualmente, quando ele se pergunta, para logo em seguida responder a si próprio: "Teria sido essa a vida que eu imaginava quando era jovem? Não. Seria tolo lamentar, mas em algum lugar dentro de mim há um fantasminha que sussurra: não se deve estar acomodado num mundo como o nosso. Como disse aquele que li na juventude: a questão é mudá-lo".
O relato de Eric Hobsbawn começa contando a sua infância: "Naquele tempo, brincar e aprender, família e escola definiam minha vida, como definiam a vida da maioria das crianças vienenses da década de 20". Em seguida, a sua adolescência e juventude em Berlim, depois da morte dos pais, e sua chegada na Inglaterra, com o início da sua vida intelectual em Cambridge, quando se filiou ao Partido Comunista Britânico e mergulhou na política. Foi testemunha ocular dos fatos que abalaram o mundo: o nazismo, a Segunda Guerra Mundial, a guerra fria, a primavera de Praga, maio de 68 em Paris, a queda do muro de Berlim, a globalização e a expansão dos Estados Unidos como nação hegemônica. Um desses assuntos - a rebelião estudantil na França - é um exemplo da sua duplicidade de papéis, a de historiador e a de personagem. Em 1968, lembra Hobsbawm, ele estava em Paris, participando das comemorações do sesquicentenário do nascimento de Karl Marx, quando o clamor das ruas o pegou pelo colarinho. Ele mesmo considera esse momento como o divisor de águas da sua autobiografia. Por sinal, é admirável a honestidade da sua análise. Há um misto de entusiasmo, como nesse trecho em que fala a respeito de uma certa foto de Cartier-Bresson: "Os jovens, a maioria masculina, nas ruas de punhos fechados, ainda com cabelos curtos, quase ocultando a presença de um ou outro rosto adulto. Mas essas caras adultas são as que recordo mais claramente, porque representam ao mesmo tempo a unidade e a incompatibilidade da velha geração de esquerda - a minha própria - com a nova geração. Recordo meu velho amigo e camarada Albert Soboul, titular da cátedra de História da Revolução Francesa na Sorbonne, espigado e de aspecto solene, vestido com terno escuro e a gravata dos acadêmicos eminentes, caminhando lado a lado com rapazes que podiam ser seus filhos, gritando palavras de ordem das quais ele, como membro legal do PC Francês, discordava profundamente. Mas como poderia alguém da tradição da Revolução e da República não "descendre dans la rue" em uma ocasião como aquela?" Assim como há também uma declarada desconfiança, manifestada por seu ceticismo em relação ao alcance do movimento: "Tão logo as densas nuvens da retórica maximalista e da expectativa cósmica se transformaram na chuva do cotidiano, tornou-se novamente visível a diferença entre êxtase e política, entre poder real e poder das flores, entre voz e ação". Penso que, como historiador, Hobsbawm intuiu que há em 1968 algo novo que ele próprio não foi capaz de decodificar, e a sua desculpa ao atribuir isso a sua dificuldade por nunca ter usado jeans é bastante significativa.
Maio de 1968 atravessou as fronteiras políticas e ideológicas, e no seu texto Hobsbawm não disfarça o choque, como se tivesse perguntando para a pessoa ao lado, "e agora, como fica?". "LSD tout de suite", "Juissez sans entraves" ("Que nada impeça o orgasmo"), talvez sejam libertários demais para um inglês de 86 anos. Reservado, Mr. Hobsbawm adverte no prefácio da sua autobiografia que essa obra trata mais do homem público do que do homem privado. Seguindo à risca, o autor é bastante econômico no que se refere ao seu primeiro casamento com Muriel Seaman, seu divórcio, a perda dos pais, o segundo matrimônio, deixando claro que a história é a prioridade do seu trabalho.
O resultado é um estudo de história com uma lúcida visão sobre esse século, que, segundo seu depoimento, passou tão rápido. Quanto ao século atual, a previsão é tempo ruim, sujeito a trevas e extermínio. Portanto, será outro desafio para os historiadores do futuro.
Esperemos que eles se mirem no exemplo do mestre Eric Hobsbawm. Que mantenham o tão famoso distanciamento e que não se esqueçam de que a "injustiça social deve ser denunciada e combatida. O mundo não vai melhorar sozinho".

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