1 de nov. de 2008

O ATREVIDO: um tratado de filosofia na primeira pessoa
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Eu penso que todas as pessoas gostariam de escrever o seu próprio Tratado de Filosofia. Normalmente não o fazem por várias razões: falta de tempo, preguiça, acomodamento e medo. E, no entanto, partes desse Tratado acabam involuntariamente por ser sussurradas dentro do ouvido de cada um, ao longo da vida: são palavras ou imagens avulsas, intuições, reações súbitas ou conformidades que acabam, muitas vezes, por (nos) admirar. Como se fossem riscos dispersos e insignificantes que interrompem subitamente a brancura de um muro muito largo e longo (e a que ninguém confere especial atenção).


Não tenho formação filosófica específica, mas não deixo de escapar à tentação do filósofo que gostaria de ver o seu Tratado registado, do princípio ao fim. No fundo, uma tentação humana e elementar. Mas caro leitor, não imagine que dei o meu tempo por mal aproveitado. Em algumas linhas apenas, alinhei os dez pontos que desenvolveria nesse breviário da profundidade da alma. Passemos-lhe revista:


1. Instantaneidade e absoluto, ou seja: a que corresponde afinal um ato tão simples como ligar e/ou desligar? - Provavelmente o mais antigo dilema da experiência humana. ON versus OF.
2. Deus e os terrorismos, ou seja: Nietzsche enganou-se: Deus nunca morreu. Ele desceu foi à terra através de uma miríade de formas. A arte, o manto ideológico, os saberes científicos, as causas pós-industriais, a tecnologia e alguns rituais desportivos foram - e alguns ainda são - formas desse tipo. Deus continua assim a existir como uma ergonomia da existência alicerçada na fé.
3. Liberdade, ou seja: qual é o sentido da única condição que é, ou deveria ser, afinal, incondicional?
4. Novas expressões e rede, ou seja: como se confrontam as linguagens milenarmente herdadas com a rede atual?
5. O triunfo do design, ou seja: uma simples resposta à seguinte pergunta: para que serviu a crítica à modernidade?
6. ´Topoi´ e media, ou seja: é verdade que o vaticínio platônico da "opinião" venceu e é, hoje em dia, pela primeira vez na vida humana, uma voz mais consagrada do que ouvida?
7. O reino da ilusão, ou seja: terão o herói e o vilão deixado de ser personagens de carne e osso, reconhecíveis e de identidade clara? Não se terão tornado em simples atributos de múltiplas peças disseminadas: imagens que refletem um e outro ao mesmo tempo sem que se distingam, nesse jogo, territórios exclusivos e bem marcados?
8. A patologia do consenso, ou seja: terão morrido as ideologias? - Não. Mas teria que provar que o consenso é, de fato, o porto de abrigo dos novos e impositivos mainstreams.
9. Esquerda/direita/vazio, ou seja: ainda existe esquerda e direita? - Substancialmente sim. As noções designam a categorias estáveis e universais socialmente interiorizadas e mobilizáveis. Nada é neutro. O próprio nada serve pra que e pra quem?
10. As causas diáfanas contemporâneas, ou seja: serão as chamadas causas "fracturantes" o reverso do "grande acontecimento" (num tempo em que deixaram de existir "grandes acontecimentos")? - De fato, nas causas do nosso tempo, há um desígnio de descanso do guerreiro; uma espécie de anti-niilismo, talvez mais desesperado do que o cansaço niilista.
Eis o que atrevo enfrentar, embora nu e cru. Que não me espulsem de São Luís.