O PT não pode se converter num tipo
institucional do gênero Forrest Gump e fazer de contas que nada passou
ou então que o tempo se encarregará de fazer as coisas passarem. A
reiteração dos vínculos do PT com sua originalidade é a principal
garantia de que o Partido não se transforme num simples e mais um
partido da ordem.
Jeferson Miola
Se o “espírito” era “moderno”, o era
enquanto estava decidido que a realidade se emancipasse da “mão morta”
de sua própria história ... e isso só poderia ser logrado derretendo os
sólidos [quer dizer, dissolvendo tudo aquilo que persiste no tempo e que
é indiferente à sua passagem e imune ao seu escoamento]. Essa intenção
requeria, por sua vez, a “profanação do sagrado”: a desautorização e a
negação do passado e, primordialmente, da “tradição” - isto é, o
sedimento e o resíduo do passado no presente. Portanto, requeria, da
mesma forma, a destruição da armadura protetora forjada pelas convicções
e lealdades que permitiam aos sólidos resistirem à “liquefação”.... ...
... ...
O que foi quebrado já não pode ser colado. Abandonem toda a esperança de unidade - tanto futura como passada - vocês, os que ingressam ao mundo da modernidade fluida.
Zygmunt Bauman, em “Modernidade Líquida”.
1. O julgamento do STF marca o fim de uma etapa da vida do PT no ano em que cumpre 33 anos de existência - apesar de não ter sido julgada a “instituição PT”.
A condenação dos Indivíduos que, no exercício de funções dirigentes no PT cometeram equívocos indeléveis, foi capsiosamente convertida em condenação do PT. Os efeitos políticos do julgamento sobre o patrimônio ético, programático e simbólico do PT foram, portanto, profundos. E cobrarão um elevado tributo por um prolongado período de tempo.
2. É sabido que a direita não desperdiçou a oportunidade de narrá-lo como o “mais importante julgamento nos 121 anos da história do STF na República”. Soube incrustá-lo com perspicácia no calendário das eleições municipais de 2012 – ainda que tenham sido frustrados nesse intento, como evidencia o desempenho eleitoral do PT, especialmente na cidade de São Paulo.
O padrão de unidade orgânica da direita na condução desse processo foi impecável. Por um lado, compactou o campo jurídico reacionário: o STF e o Ministério Público foram, nessa perspectiva, eficientes “células partidárias” no Poder Judiciário. O Supremo, aquela instância “Inatacável, Inalcançável e Divina”, conferiu uma falsa materialidade jurídica para a torpeza política.
Em outra frente, os segmentos da mídia hegemônica e monopólica, naturalmente concorrenciais entre si, desta feita se uniram na editorialização do processo e na narrativa subliminar contra o Partido.
A prioridade foi implicar centralmente o PT, mais além dos Indivíduos efetivamente implicados. Os Ministros do STF e a mídia foram os principais atores políticos e juízes do processo. Fizeram militância obssessiva pela condenação do PT como instituição. O ativismo frenético de determinados ministros do Supremo, do Procurador-Geral da República e da mídia hegemônica substitiu a necessidade de maior proeminência dos partidos da oposição conservadora, que desempenharam um papel coadjuvante no combate ao PT e ao governo. Desse modo, simularam ser um julgamento “técnico”, livre de politização.
***
Nas circunstâncias análogas da história do Brasil em que houve uma confluência tão harmoniosa dos interesses das distintas estruturas reacionárias de Poder – no Judiciário, no Parlamento e na mídia hegemônica - as resultantes foram instabilidade e fratura institucional: histerismo contra Getúlio Vargas, auto-golpe de Jânio Quadros, golpe militar de 1964, etc.
A conspiração no marco da institucionalidade, com aparência de normalidade democrática, é a modalidade contemporânea do que alguns autores chamam de “neogolpismo” [1] levado a cabo contra governos progressistas. Os “golpes institucionais” em Honduras e Paraguai, bem como as tentativas renitentes de desestabilização na Argentina, Bolívia e Equador são evidências deste fenômeno na região.
3. A aplicação da “inovadora” – ou jurisprudencial, no vocabulário jurídico – tese adotada pelo Supremo para condenar os réus, foi considerada equivocada por um dos principais autores da teoria do “domínio do fato”, o professor e jurista alemão Claus Roxin [2].
Outros autores consideraram-no um “julgamento de exceção” [3], pois atropelou os princípios do devido processo legal e subverteu a ordem jurídica democrática moderna advinda com as revoluções oitocentistas.
É certo, por isso, que não se tratou de um julgamento isento, imparcial e atento à técnica jurídica. Tivesse sido, por outro lado, um julgamento realizado à margem das Leis e da Constituição, não se estaria ante um processo judicial, e sim ante um regime totalitário. Não é esse, entretanto, o presente caso, ainda que seja nítido o intento conspirativo intínseco a ele.
4. Por mais que se confirmem as inúmeras aberrações do julgamento, a realidade é que ele somente ocorreu e foi semioticamente espetacularizado porque existiu causa material concreta a motivar sua instalação: alguns ex-dirigentes do PT aplicaram os mesmos dispositivos do sistema ilegal de financiamento de campanhas adotado pelos partidos tradicionais. Considerando tais práticas, não há garantias de que os réus não seriam condenados mesmo num julgamento técnico e isento.
A partir desse fato gerador, porém, uma série de extrapolações foram feitas, e a mais estapafúrdia delas é o alegado “pagamento de mesada” regular a parlamentares durante o governo Lula – inclusive a parlamentares aliados e a integrantes do próprio PT.
5. Determinados setores partidários, em especial os que pertencem à tendência política interna dos implicados, involuntariamente acabam reforçando a absurda idéia de que o PT foi condenado, e não exclusivamente os Indivíduos. Quando reivindicam solidariedade institucional do PT [cotização para pagamento de multas, por exemplo] como se o PT tivesse sido condenado, nada mais fazem que referendar e reforçar, no debate público, a imputação criminosa da direita contra o PT.
O conjunto do tecido partidário, mesmo sem nenhum conhecimento sobre as práticas “heterodoxas” empregadas, ainda assim foi respeitoso e solidário com os ex-dirigentes no curso desse julgamento thermidoriano. E continua sendo, pois não reivindica a aplicação das normas estatutárias relativas a casos como o presente.
6. Concluído o julgamento no Supremo, porém, o PT não pode seguir refém do agendamento imposto pela mídia e reverberado nos parlamentos, no debate público e na vida cotidiana da sociedade. O julgamento do chamado “mensalão” está praticamente concluído – restam apenas prazos para recursos e para os trâmites finais. Mas os graves efeitos ocasionados ao PT são, desde logo, definitivos e irreversíveis, e sobre eles se deve intervir.
É momento, pois, de se refletir com uma sincera e desarmada autocrítica a respeito dos acontecimentos, de se entender as causas profundas da adoção de práticas degeneradas, e de se projetar políticas que recuperem a identidade original do PT no imaginário popular.
A realidade presente, por mais dolorosa que possa ser, oferece oportunidades importantes para se entender os acontecimentos que acometeram o Partido.
7. No plano interno, da organização partidária, as sucessivas mudanças empreendidas nos últimos anos com o espírito de “flexibilizar” o funcionamento partidário – do financiamento à filiação – se converteram, potencialmente, em vetores para o abalo moral e ético.
A mediação é um componente vital da atividade política. Entretanto, em muitas vezes uma visão excessivamente pragmática prepondera sobre opções políticas que podem ser mais trabalhosas no curto prazo, mas que asseguram uma coerência estratégica.
Paradoxalmente, os petistas que foram julgados pereceram devido às próprias visões e critérios de construção partidária que definiram para o PT na condição de histórica maioria interna. Os acontecimentos demonstraram, finalmente, que a secundarização dos valores originais do PT é fonte de importantes problemas – mas jamais solução.
8. Abrandando a visão socialista para tornar-se “palatável” e “moderno”, o PT abdicou da radicalidade política e se afeiçoou ao jogo político conservador e tradicional. Um dos reflexos disso foi a “parlamentarização da política”, ou seja, o estabelecimento da arena parlamentar como âmbito principalíssimo da disputa hegemônica e de garantia de governabilidade. A governabilidade congressual é considerada, nesse sentido, uma fatalidade incontornável.
Alianças exóticas e sem identidade programática substituem a coerência e a nitidez ideológica, deseducam o povo desencantando-o em relação à política, que acaba por criminalizá-la. A relativa secundarização dos espaços públicos de deliberação e de controle social por vezes é compensada pelas lógicas parlamentares de sustentação governamental.
No governo central, o PT tem explorado com timidez uma potente capacidade de mobilização da sua base social para defender e sustentar as mudanças e transformações e para contrarrestar a pressão por vezes chantagista do Parlamento. Priorizando as negociações inter-partidárias e as relações parlamentares, sempre se fica vulnerável às práticas do toma-lá-dá-cá.
9. O adiamento na implementação de determinadas reformas durante os 10 anos no governo nacional, cobra um importante preço político. São reformas que, se não forem disputadas para que ganhem efetividade, comprometerão a construção de um estatuto democrático e plural para o país.
O Brasil contemporâneo reclama a realização das reformas tributária, política e do Judiciário. Além disso, necessita de mudanças que assegurem a democratização do acesso à produção e à difusão da informação e da comunicação pública.
De todas as mudanças que são urgentes, a reforma política e a democratização dos meios de comunicação são as de primeiro nível de prioridade.
10. Sem reforma política com financiamento público de campanhas, com listas partidárias e com o fim das coligações proporcionais, a porta da corrupção eleitoral seguirá escancarada. Sem uma verdadeira reforma política os governos continuarão dependentes de alianças esdrúxulas, sem coerência programática e estruturadas na base do loteamento do aparelho de Estado.
O atual sistema político e eleitoral favorece o poder econômico e distorce a representação pública. É um campo fecundo para a mercantilização da política e para a deturpação da democracia. E justamente esse sistema político e eleitoral está na raiz do chamado “mensalão”.
11. De outra parte, a preservação de um padrão permissivo do Estado em relação aos oligopólios midiáticos é fator que interdita a pluralidade e a democracia cultural. Os meios de comunicação no país pertencem a não mais que a um punhado de famílias e pastores de igreja. Essa realidade é um escândalo para um país laico, de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 200 milhões de habitantes e portador de uma generosa pluralidade cultural.
Em alguns países europeus, o problema da regulação da propriedade dos meios de comunicação há muito foi superado. Lá, além de restrições muito efetivas ao exercício de monopólios e ao domínio de múltiplas mídias pelos mesmos conglomerados, o Estado é proprietário de emissoras públicas de rádio e televisão, para garantir a pluralidade de expressão das sociedades nacionais.
A democratização e a regulação da propriedade dos meios de comunicação [e não do conteúdo publicado] segundo o interesse público [de toda a sociedade, e não somente dos donos dos veículos] é um componente vital para a democracia, para a liberdade e para a pluralidade. Os monopólios verificados no Brasil não subsistiriam nas mais avançadas democracias do mundo.
12. No curso de 2013, nos 33 anos de vida do PT, se realizará o PED [Processo de Eleições Diretas], e se desenrolarão os debates partidários com vistas ao 5º Congresso Nacional do Partido agendado para fevereiro de 2014.
Além dessas complexas lógicas internas, se deve prever para 2013 o aprofundamento dos ferozes enfrentamentos políticos e ideológicos que têm como horizonte a sucessão presidencial em 2014. Será um ano, pois, de continuidade e aprofundamento da “guerra anti-popular prolongada” iniciada em 2003 depois da assunção de Lula no governo central do Brasil.
O PT deve se planejar estrategicamente para fazer frente à natural exposição pública que terá ao longo desse ano. Deverá aproveitá-la para politizar o diálogo com o conjunto da sociedade, em especial com os setores que se referenciam nas políticas e práticas partidárias, assim como com os segmentos que acompanham com atenção e interesse os caminhos tomados pelo Partido.
13. O êxito na construção do PT nesses 33 anos, que o guindou precocemente à Presidência da República, está em grande medida associado à capacidade de elaboração e persuação programática, de encantamento com o ideário de “um outro mundo possível” e de implementação de revolucionárias formas de fazer política e de gerir a coisa pública com ética e participação popular.
Esse patrimônio do PT - de confiança e esperança - é muito maior que o maior dos erros que eventualmente alguns militantes possam cometer individualmente. E é a base a partir da qual se pode lançar iniciativas que visem recuperar a imagem do Partido no imaginário social. Para isso, é necessário que se faça uma humilde autocrítica acerca dos acontecimentos que originaram o julgamento no STF, admitindo os equívocos cometidos por alguns ex-dirigentes partidários.
Nenhum evento desfavorável será capaz de subtrair a autoridade do PT para liderar uma disputa teórica e cultural na sociedade em torno de valores republicanos, democráticos e éticos. Somente com uma postura autocrítica o PT poderá assumir uma conduta ofensiva no debate público acerca da necessidade de mudanças no atual sistema político e eleitoral que impede a dignidade e a moralidade na política.
14. Ainda não se produziu um balanço exaustivo a respeito dos 10 anos dos governos do PT no Brasil. Mas, mesmo contabilizadas as contradições e insuficiências dos governos Lula e Dilma, visíveis no padrão de acumulação capitalista, a realidade é que os governos petistas realizam o empreendimento mais generoso e civilizatório da história do país.
O ciclo do PT no governo, entretanto, não será eterno, ainda que que possa ser longevo. Por isso, é fundamental se refletir a respeito da institucionalização de mecanismos e práticas consagradores de uma nova cultura de gestão do Estado, para garantir avanços obtidos e para preservar as conquistas democrático-populares.
Na ausência de salvaguardas institucionais para a preservação desse patrimônio, num eventual revés eleitoral se poderá sentir uma desacumulação na capacidade de luta para a retomada do poder e para a acumulação de forças de um projeto transformador.
A estrutura de dominação, lapidada em 500 anos de opressão, exclusão e concentração da riqueza, provavelmente resistiria a décadas de governos petistas. A situação na Europa é exemplar: o Estado de bem-estar social, com seus 60 anos de edificação, tem sido a principal vítima na crise. Os poderosos – financistas à frente – preservam seus interesses às custas da destruição dos direitos de cidadania da maioria do povo.
O próximo período, que será de ferrenhas disputas com a oposição conservadora, permitirá ao PT difundir as conquistas dos 10 anos na condução do país. Será ocasião para conectar os avanços havidos com a necessidade de se reformar o Estado para incrustrar nele os compromissos com os direitos, com a democracia participativa, com a igualdade, com os ideais republicanos e com a justiça social.
Mereceria ser avaliado o cenário de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte específica e exclusiva, desde que constituída numa correlação de forças favoráveis aos interesses democrático-populares, desde que possa refletir a conjuntura de avanço do campo progressista e de esquerda.
***
O PT não pode se converter num tipo institucional do gênero Forrest Gump e fazer de contas que nada passou ou então que o tempo se encarregará de fazer as coisas passarem.
Na vida real - no dia-a-dia das escolas, das repartições públicas, das empresas, dos lares -, as dificuldades enfrentadas pelo PT têm uma audiência atenta. Por razões óbvias: o PT lidera o governo nacional, e é a mais auspiciosa invenção da esquerda brasileira e a mais renovada tradição democrática e socialista do Brasil.
Desprezar essa realidade não é o melhor critério político e, menos ainda, expressão de sensatez. O PT tem condições de assumir a iniciativa política na conjuntura, em especial buscando politizar o debate sobre questões essenciais para o avanço republicano e democrático. De outra maneira, será agendado pela oposição conservadora e seus braços institucionais no judiciário e na mídia hegemônica, ficando numa posição defensiva e respondendo no terreno deles.
A reiteração dos vínculos do PT com sua originalidade é o principal antídoto contra a liquefação política no contexto da “modernidade líquida”. E, também, garantia de que o Partido não se transforme num simples e mais um partido da ordem – risco alertado por Florestan Fernandes na eventualidade do PT abdicar dos valores que constituem e que justificam sua origem.
NOTAS
[1] Ver artigo “Estados Unidos, Venezuela e Paraguai”, de autoria de Samuel Pinheiro Guimarães Neto, publicado na Agência Carta Maior, e entrevista ao Jornal Folha de São Paulo em 29/06/2012 do mesmo autor: “Diplomata vê onda golpista na América do Sul”.
[2] Entrevista do jurista Claus Roxin à Folha de São Paulo, em 11/11/2012 –“Participação no comando de esquema tem de ser provada”.
[3] Entrevista de Wanderley Guilherme dos Santos ao Valor Econônico de 21/09/2012 – “Mensalão será um julgamento de exceção”.
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O que foi quebrado já não pode ser colado. Abandonem toda a esperança de unidade - tanto futura como passada - vocês, os que ingressam ao mundo da modernidade fluida.
Zygmunt Bauman, em “Modernidade Líquida”.
1. O julgamento do STF marca o fim de uma etapa da vida do PT no ano em que cumpre 33 anos de existência - apesar de não ter sido julgada a “instituição PT”.
A condenação dos Indivíduos que, no exercício de funções dirigentes no PT cometeram equívocos indeléveis, foi capsiosamente convertida em condenação do PT. Os efeitos políticos do julgamento sobre o patrimônio ético, programático e simbólico do PT foram, portanto, profundos. E cobrarão um elevado tributo por um prolongado período de tempo.
2. É sabido que a direita não desperdiçou a oportunidade de narrá-lo como o “mais importante julgamento nos 121 anos da história do STF na República”. Soube incrustá-lo com perspicácia no calendário das eleições municipais de 2012 – ainda que tenham sido frustrados nesse intento, como evidencia o desempenho eleitoral do PT, especialmente na cidade de São Paulo.
O padrão de unidade orgânica da direita na condução desse processo foi impecável. Por um lado, compactou o campo jurídico reacionário: o STF e o Ministério Público foram, nessa perspectiva, eficientes “células partidárias” no Poder Judiciário. O Supremo, aquela instância “Inatacável, Inalcançável e Divina”, conferiu uma falsa materialidade jurídica para a torpeza política.
Em outra frente, os segmentos da mídia hegemônica e monopólica, naturalmente concorrenciais entre si, desta feita se uniram na editorialização do processo e na narrativa subliminar contra o Partido.
A prioridade foi implicar centralmente o PT, mais além dos Indivíduos efetivamente implicados. Os Ministros do STF e a mídia foram os principais atores políticos e juízes do processo. Fizeram militância obssessiva pela condenação do PT como instituição. O ativismo frenético de determinados ministros do Supremo, do Procurador-Geral da República e da mídia hegemônica substitiu a necessidade de maior proeminência dos partidos da oposição conservadora, que desempenharam um papel coadjuvante no combate ao PT e ao governo. Desse modo, simularam ser um julgamento “técnico”, livre de politização.
***
Nas circunstâncias análogas da história do Brasil em que houve uma confluência tão harmoniosa dos interesses das distintas estruturas reacionárias de Poder – no Judiciário, no Parlamento e na mídia hegemônica - as resultantes foram instabilidade e fratura institucional: histerismo contra Getúlio Vargas, auto-golpe de Jânio Quadros, golpe militar de 1964, etc.
A conspiração no marco da institucionalidade, com aparência de normalidade democrática, é a modalidade contemporânea do que alguns autores chamam de “neogolpismo” [1] levado a cabo contra governos progressistas. Os “golpes institucionais” em Honduras e Paraguai, bem como as tentativas renitentes de desestabilização na Argentina, Bolívia e Equador são evidências deste fenômeno na região.
3. A aplicação da “inovadora” – ou jurisprudencial, no vocabulário jurídico – tese adotada pelo Supremo para condenar os réus, foi considerada equivocada por um dos principais autores da teoria do “domínio do fato”, o professor e jurista alemão Claus Roxin [2].
Outros autores consideraram-no um “julgamento de exceção” [3], pois atropelou os princípios do devido processo legal e subverteu a ordem jurídica democrática moderna advinda com as revoluções oitocentistas.
É certo, por isso, que não se tratou de um julgamento isento, imparcial e atento à técnica jurídica. Tivesse sido, por outro lado, um julgamento realizado à margem das Leis e da Constituição, não se estaria ante um processo judicial, e sim ante um regime totalitário. Não é esse, entretanto, o presente caso, ainda que seja nítido o intento conspirativo intínseco a ele.
4. Por mais que se confirmem as inúmeras aberrações do julgamento, a realidade é que ele somente ocorreu e foi semioticamente espetacularizado porque existiu causa material concreta a motivar sua instalação: alguns ex-dirigentes do PT aplicaram os mesmos dispositivos do sistema ilegal de financiamento de campanhas adotado pelos partidos tradicionais. Considerando tais práticas, não há garantias de que os réus não seriam condenados mesmo num julgamento técnico e isento.
A partir desse fato gerador, porém, uma série de extrapolações foram feitas, e a mais estapafúrdia delas é o alegado “pagamento de mesada” regular a parlamentares durante o governo Lula – inclusive a parlamentares aliados e a integrantes do próprio PT.
5. Determinados setores partidários, em especial os que pertencem à tendência política interna dos implicados, involuntariamente acabam reforçando a absurda idéia de que o PT foi condenado, e não exclusivamente os Indivíduos. Quando reivindicam solidariedade institucional do PT [cotização para pagamento de multas, por exemplo] como se o PT tivesse sido condenado, nada mais fazem que referendar e reforçar, no debate público, a imputação criminosa da direita contra o PT.
O conjunto do tecido partidário, mesmo sem nenhum conhecimento sobre as práticas “heterodoxas” empregadas, ainda assim foi respeitoso e solidário com os ex-dirigentes no curso desse julgamento thermidoriano. E continua sendo, pois não reivindica a aplicação das normas estatutárias relativas a casos como o presente.
6. Concluído o julgamento no Supremo, porém, o PT não pode seguir refém do agendamento imposto pela mídia e reverberado nos parlamentos, no debate público e na vida cotidiana da sociedade. O julgamento do chamado “mensalão” está praticamente concluído – restam apenas prazos para recursos e para os trâmites finais. Mas os graves efeitos ocasionados ao PT são, desde logo, definitivos e irreversíveis, e sobre eles se deve intervir.
É momento, pois, de se refletir com uma sincera e desarmada autocrítica a respeito dos acontecimentos, de se entender as causas profundas da adoção de práticas degeneradas, e de se projetar políticas que recuperem a identidade original do PT no imaginário popular.
A realidade presente, por mais dolorosa que possa ser, oferece oportunidades importantes para se entender os acontecimentos que acometeram o Partido.
7. No plano interno, da organização partidária, as sucessivas mudanças empreendidas nos últimos anos com o espírito de “flexibilizar” o funcionamento partidário – do financiamento à filiação – se converteram, potencialmente, em vetores para o abalo moral e ético.
A mediação é um componente vital da atividade política. Entretanto, em muitas vezes uma visão excessivamente pragmática prepondera sobre opções políticas que podem ser mais trabalhosas no curto prazo, mas que asseguram uma coerência estratégica.
Paradoxalmente, os petistas que foram julgados pereceram devido às próprias visões e critérios de construção partidária que definiram para o PT na condição de histórica maioria interna. Os acontecimentos demonstraram, finalmente, que a secundarização dos valores originais do PT é fonte de importantes problemas – mas jamais solução.
8. Abrandando a visão socialista para tornar-se “palatável” e “moderno”, o PT abdicou da radicalidade política e se afeiçoou ao jogo político conservador e tradicional. Um dos reflexos disso foi a “parlamentarização da política”, ou seja, o estabelecimento da arena parlamentar como âmbito principalíssimo da disputa hegemônica e de garantia de governabilidade. A governabilidade congressual é considerada, nesse sentido, uma fatalidade incontornável.
Alianças exóticas e sem identidade programática substituem a coerência e a nitidez ideológica, deseducam o povo desencantando-o em relação à política, que acaba por criminalizá-la. A relativa secundarização dos espaços públicos de deliberação e de controle social por vezes é compensada pelas lógicas parlamentares de sustentação governamental.
No governo central, o PT tem explorado com timidez uma potente capacidade de mobilização da sua base social para defender e sustentar as mudanças e transformações e para contrarrestar a pressão por vezes chantagista do Parlamento. Priorizando as negociações inter-partidárias e as relações parlamentares, sempre se fica vulnerável às práticas do toma-lá-dá-cá.
9. O adiamento na implementação de determinadas reformas durante os 10 anos no governo nacional, cobra um importante preço político. São reformas que, se não forem disputadas para que ganhem efetividade, comprometerão a construção de um estatuto democrático e plural para o país.
O Brasil contemporâneo reclama a realização das reformas tributária, política e do Judiciário. Além disso, necessita de mudanças que assegurem a democratização do acesso à produção e à difusão da informação e da comunicação pública.
De todas as mudanças que são urgentes, a reforma política e a democratização dos meios de comunicação são as de primeiro nível de prioridade.
10. Sem reforma política com financiamento público de campanhas, com listas partidárias e com o fim das coligações proporcionais, a porta da corrupção eleitoral seguirá escancarada. Sem uma verdadeira reforma política os governos continuarão dependentes de alianças esdrúxulas, sem coerência programática e estruturadas na base do loteamento do aparelho de Estado.
O atual sistema político e eleitoral favorece o poder econômico e distorce a representação pública. É um campo fecundo para a mercantilização da política e para a deturpação da democracia. E justamente esse sistema político e eleitoral está na raiz do chamado “mensalão”.
11. De outra parte, a preservação de um padrão permissivo do Estado em relação aos oligopólios midiáticos é fator que interdita a pluralidade e a democracia cultural. Os meios de comunicação no país pertencem a não mais que a um punhado de famílias e pastores de igreja. Essa realidade é um escândalo para um país laico, de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 200 milhões de habitantes e portador de uma generosa pluralidade cultural.
Em alguns países europeus, o problema da regulação da propriedade dos meios de comunicação há muito foi superado. Lá, além de restrições muito efetivas ao exercício de monopólios e ao domínio de múltiplas mídias pelos mesmos conglomerados, o Estado é proprietário de emissoras públicas de rádio e televisão, para garantir a pluralidade de expressão das sociedades nacionais.
A democratização e a regulação da propriedade dos meios de comunicação [e não do conteúdo publicado] segundo o interesse público [de toda a sociedade, e não somente dos donos dos veículos] é um componente vital para a democracia, para a liberdade e para a pluralidade. Os monopólios verificados no Brasil não subsistiriam nas mais avançadas democracias do mundo.
12. No curso de 2013, nos 33 anos de vida do PT, se realizará o PED [Processo de Eleições Diretas], e se desenrolarão os debates partidários com vistas ao 5º Congresso Nacional do Partido agendado para fevereiro de 2014.
Além dessas complexas lógicas internas, se deve prever para 2013 o aprofundamento dos ferozes enfrentamentos políticos e ideológicos que têm como horizonte a sucessão presidencial em 2014. Será um ano, pois, de continuidade e aprofundamento da “guerra anti-popular prolongada” iniciada em 2003 depois da assunção de Lula no governo central do Brasil.
O PT deve se planejar estrategicamente para fazer frente à natural exposição pública que terá ao longo desse ano. Deverá aproveitá-la para politizar o diálogo com o conjunto da sociedade, em especial com os setores que se referenciam nas políticas e práticas partidárias, assim como com os segmentos que acompanham com atenção e interesse os caminhos tomados pelo Partido.
13. O êxito na construção do PT nesses 33 anos, que o guindou precocemente à Presidência da República, está em grande medida associado à capacidade de elaboração e persuação programática, de encantamento com o ideário de “um outro mundo possível” e de implementação de revolucionárias formas de fazer política e de gerir a coisa pública com ética e participação popular.
Esse patrimônio do PT - de confiança e esperança - é muito maior que o maior dos erros que eventualmente alguns militantes possam cometer individualmente. E é a base a partir da qual se pode lançar iniciativas que visem recuperar a imagem do Partido no imaginário social. Para isso, é necessário que se faça uma humilde autocrítica acerca dos acontecimentos que originaram o julgamento no STF, admitindo os equívocos cometidos por alguns ex-dirigentes partidários.
Nenhum evento desfavorável será capaz de subtrair a autoridade do PT para liderar uma disputa teórica e cultural na sociedade em torno de valores republicanos, democráticos e éticos. Somente com uma postura autocrítica o PT poderá assumir uma conduta ofensiva no debate público acerca da necessidade de mudanças no atual sistema político e eleitoral que impede a dignidade e a moralidade na política.
14. Ainda não se produziu um balanço exaustivo a respeito dos 10 anos dos governos do PT no Brasil. Mas, mesmo contabilizadas as contradições e insuficiências dos governos Lula e Dilma, visíveis no padrão de acumulação capitalista, a realidade é que os governos petistas realizam o empreendimento mais generoso e civilizatório da história do país.
O ciclo do PT no governo, entretanto, não será eterno, ainda que que possa ser longevo. Por isso, é fundamental se refletir a respeito da institucionalização de mecanismos e práticas consagradores de uma nova cultura de gestão do Estado, para garantir avanços obtidos e para preservar as conquistas democrático-populares.
Na ausência de salvaguardas institucionais para a preservação desse patrimônio, num eventual revés eleitoral se poderá sentir uma desacumulação na capacidade de luta para a retomada do poder e para a acumulação de forças de um projeto transformador.
A estrutura de dominação, lapidada em 500 anos de opressão, exclusão e concentração da riqueza, provavelmente resistiria a décadas de governos petistas. A situação na Europa é exemplar: o Estado de bem-estar social, com seus 60 anos de edificação, tem sido a principal vítima na crise. Os poderosos – financistas à frente – preservam seus interesses às custas da destruição dos direitos de cidadania da maioria do povo.
O próximo período, que será de ferrenhas disputas com a oposição conservadora, permitirá ao PT difundir as conquistas dos 10 anos na condução do país. Será ocasião para conectar os avanços havidos com a necessidade de se reformar o Estado para incrustrar nele os compromissos com os direitos, com a democracia participativa, com a igualdade, com os ideais republicanos e com a justiça social.
Mereceria ser avaliado o cenário de convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte específica e exclusiva, desde que constituída numa correlação de forças favoráveis aos interesses democrático-populares, desde que possa refletir a conjuntura de avanço do campo progressista e de esquerda.
***
O PT não pode se converter num tipo institucional do gênero Forrest Gump e fazer de contas que nada passou ou então que o tempo se encarregará de fazer as coisas passarem.
Na vida real - no dia-a-dia das escolas, das repartições públicas, das empresas, dos lares -, as dificuldades enfrentadas pelo PT têm uma audiência atenta. Por razões óbvias: o PT lidera o governo nacional, e é a mais auspiciosa invenção da esquerda brasileira e a mais renovada tradição democrática e socialista do Brasil.
Desprezar essa realidade não é o melhor critério político e, menos ainda, expressão de sensatez. O PT tem condições de assumir a iniciativa política na conjuntura, em especial buscando politizar o debate sobre questões essenciais para o avanço republicano e democrático. De outra maneira, será agendado pela oposição conservadora e seus braços institucionais no judiciário e na mídia hegemônica, ficando numa posição defensiva e respondendo no terreno deles.
A reiteração dos vínculos do PT com sua originalidade é o principal antídoto contra a liquefação política no contexto da “modernidade líquida”. E, também, garantia de que o Partido não se transforme num simples e mais um partido da ordem – risco alertado por Florestan Fernandes na eventualidade do PT abdicar dos valores que constituem e que justificam sua origem.
NOTAS
[1] Ver artigo “Estados Unidos, Venezuela e Paraguai”, de autoria de Samuel Pinheiro Guimarães Neto, publicado na Agência Carta Maior, e entrevista ao Jornal Folha de São Paulo em 29/06/2012 do mesmo autor: “Diplomata vê onda golpista na América do Sul”.
[2] Entrevista do jurista Claus Roxin à Folha de São Paulo, em 11/11/2012 –“Participação no comando de esquema tem de ser provada”.
[3] Entrevista de Wanderley Guilherme dos Santos ao Valor Econônico de 21/09/2012 – “Mensalão será um julgamento de exceção”.
Jeferson Miola foi coordenador-executivo do 5º Fórum Social Mundial.
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