Não feche seus olhos esta noite
Não há ilusão, otimismo, inocência, amor nem alegria nos poemas nem na prosa poética da gaúcha Maira Parula. Em Não feche seus olhos esta noite, seu livro de estréia, o humor, quando existe, é ácido; a insanidade é o estado normal das coisas e a morte, tão misteriosa e certa, é um tema mais inspirador e excitante que a vida, submersa em tédio e inércia. Mas se a autora consegue transformar os males da sociedade moderna em beleza literária, é sinal de que nem tudo está perdido, então.
"Espero que goste de meus poemas e me desculpe se eles não são muito intelectuais. Eu faço versos para serem entendidos de imediato, como quem lambe um sorvete na janela", diz Maira Parula em um de seus textos, a carta de uma escritora iniciante a um editor. Como o próprio trecho destacado indica, o trabalho da autora é direto e, ao mesmo tempo, profundo. Que o digam suas diferentes vozes narrativas: a mulher que morreu de vergonha aos poucos; a que hoje dobra origamis, em vez de papelotes de cocaína; a que tentava mudar a sociedade com uma metralhadora, mas queria chegar em casa cedo; a garota que chega inchada e peluda à puberdade e se corta com uma lâmina, não apenas para se depilar, mas também por ter a esperança de que seu corpo se esvazie como um balão de aniversário.
No livro, Deus é uma figura sempre questionada. A autora declara: "A temporada de caça está aberta. Procuro Deus vivo ou morto. Pago bem." Mas o que está em questão não é tanto Sua existência, mas Seus atos e Sua lógica. "Deus é um morcego / Cego e sonolento / Que vê o mundo de pernas para o ar", ela escreve. Jesus também não escapa do julgamento da escritora: "Estava coberto de boas intenções, vá lá, mas foi um bocado tolo e exibicionista. A humildade pomposa dos profetas chega a parecer arrogância."