8 de nov. de 2007

Os dois lados da fidelidade

Nos últimos anos, o Poder Judiciário federal vem se destacando por decisões que alteram pontos importantes do sistema político brasileiro. Nem sempre com acerto. Em 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu engessar o federalismo brasileiro e verticalizou as coligações. A medida teve como único efeito prático uma desidratação das coligações para a Presidência da República e, anos depois, foi tornada sem efeito por decisão do Congresso Nacional. Em 2006, o TSE considerou inconstitucional uma das raras propostas de reforma aprovadas pelo Congresso: a cláusula de desempenho de 5%. Pouco depois, como conseqüência da decisão tomada a respeito da cláusula, o TSE decidiu alterar as regras de distribuição do Fundo Partidário, estabelecendo uma distribuição mais igualitária dos recursos. A medida teria provocado aumento no número de microssiglas no país, fazendo a alegria de organizações sem nenhum lastro social e que sobrevivem no mercado eleitoral negociando vagas em lista e tempo de rádio e televisão. A interpretação do TSE não chegou a vigorar porque o Congresso, pressionado pelos grandes partidos, tratou de legislar sobre o tema.
Finalmente, entre março e outubro deste ano, o TSE decidiu que a leitura correta da Constituição permite sustentar a tese de que os mandatos, nos cargos proporcionais ou majoritários, pertencem aos partidos e não aos representantes eleitos. Nesse caso, não parece haver um desacordo substantivo entre os poderes Judiciário e Legislativo. Proposta de emenda constitucional (PEC) aprovada recentemente no Senado Federal aponta no mesmo sentido, sendo mais rigorosa no que se refere ao tratamento das exceções, embora mais leniente quanto à entrada em vigor da nova regra. A tese de que os mandatos pertencem aos partidos pode ser analisada sob dois ângulos. Quanto ao impacto sobre a troca de partido dos representantes eleitos, a decisão deve ser saudada. Na escala em que vinha ocorrendo desde 1985, a migração partidária não apenas abria espaço para transações pouco republicanas, envolvendo os mandatos conquistados nas urnas, como afetava de forma brutal a representatividade do sistema partidário no interior do Legislativo
Desde logo, cabe esclarecer que a troca de partido não se constitui necessariamente uma violação à vontade do eleitor, já que o sistema de lista aberta estimula uma escolha eleitoral personalizada. O quadro é outro, no entanto, quando analisamos o problema não mais sob a ótica de cada eleitor, mas em função do resultado do processo eleitoral. Nesse caso, as migrações no interior do Legislativo levam o sistema partidário parlamentar a se afastar do sistema partidário eleitoral de forma acentuada. Nas democracias contemporâneas, esse afastamento existe apenas em decorrência da aplicação do sistema eleitoral. No Brasil, esta distância continua a aumentar depois de transformados os votos em cadeiras e iniciada a legislatura, permitindo que a força de um partido no Legislativo deixe de guardar relação com seu desempenho nas urnas.
Por outro lado, a decisão de que os mandatos pertencem aos partidos acentua o contraste existente no Brasil entre o cenário eleitoral e o Legislativo. No primeiro, no curso das campanhas e até o momento em que se definem os mandatos, são os candidatos os grandes atores. São eles que se apresentam como os agentes capazes de representar o conjunto dos eleitores. O sistema eleitoral incentiva a relação personalizada à medida que sequer exige do eleitor que saiba a que partido pertence o candidato: para efeitos práticos esta é uma informação desnecessária. Mas quando passamos ao cenário legislativo, o poder dos candidatos - agora deputados - diminui sensivelmente, e são os partidos, por intermédio de seus líderes, que detêm a maior parte dos poderes de agenda e veto. No frigir os ovos, o eleitor brasileiro, em sua grande maioria, elege representantes que não têm poder de fato.
O que se tenta apontar aqui é que soluções ad hoc na política tendem a não dar conta de problemas sistêmicos. No nosso caso, ao domínio do cenário legislativo pelos partidos vem se somar o entendimento de que estes são também os donos dos mandatos. A pergunta a ser feita parece óbvia: por que não reforçar o papel dos partidos também no cenário eleitoral, abandonando o sistema de lista aberta e adotando outro, de listas pré-ordenadas?

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