14 de out. de 2007

O Homem que via o trem passar

Certa vez Alfred Hitchcock ligou para a casa de Georges Simenon. A secretária do es­critor disse que ele não podia atender, pois estava escrevendo um romance. Hitchcock res­pondeu - 'Tudo bem, eu espero ele terminar'.
A anedota, verdadeira ou não, dá idéia da espantosa pro­dução do autor belga. Escrevia uma novela em cerca de 11 dias, datilografando um capítulo por dia numa média de 92 palavras por minuto. Publicou 420 vo­lumes em meio século de tra­balho, dos quais 84 casos do inspetor Maigret, seu mais fa­moso personagem. Apesar dessa produção in­sana, é considerado um dos maiores escritores de língua francesa. Henry Miller sintetiza o sentimento da crítica com a confissão - 'Eu não acreditava que alguém pudesse ser, ao mesmo tempo, tão popular e tão bom'. O relançamento daquela que é considerada a sua obra-prima, "O Homem que via o trem passar", publicada em 1938, confirma o espanto.
São duas as metáforas cen­trais do livro - o trem e o jogo de xadrez.
O trem representa o mo­vimento, a aventura e a in­certeza, por oposição à imobilidade, ao tédio e as certezas na vida de um burguês comum. Esse burguês, representado pe­lo protagonista Kees Popinga, não tem um nome comum, mas sua vida na casa e no trabalho é absolutamente burocrática. No entanto, nele hiberna um germe de revolta ou loucura, iden­tificado pela emoção que sente ao ver um trem passar - 'Enfim, se tivesse procurado em si mes­mo, pondo a mão na consciên­cia, um grão de loucura latente que pudesse predispô-lo a um futuro tumultuado, não lhe teria ocorrido pensar em certa emoção furtiva, quase vergonhosa, que o assaltava quando via um trem passar, um trem noturno, de preferência, com as cortinas baixadas sobre o mistério dos passageiros'. O germe desperta quando a empresa à qual ele tinha de­dicado a vida vai à falência por falcatruas do próprio dono. O narrador, como que colado às costas de Popinga, acompanha sua dissolução moral depois que ele toma o sonhado trem no­turno e larga toda a sua vida para trás. O leitor acompanha a transformação do protagonista pela sua própria perspectiva, vendo o burocrata se trans­formar em criminoso que de­ decidiu não prestar contas a mais ninguém - 'Não sou louco nem maníaco. Apenas, aos 40 anos, tomei a decisão de viver como me agrada, sem fazer mais caso das convenções ou das leis. Descobri - um pouco tarde, convenho - que ninguém as observa e que até agora eu vinha me deixando iludir'.
Uma das qualidades de toda a obra de Simenon se destaca nesse volume - como a narrativa não julga os personagens, o leitor é forçado a não julgá-los também, suspendendo pelo tempo da leitura seus códigos morais e suas certezas. Dessa maneira, tornam-se gritantes al­gumas perguntas fundamentais sobre a existência - vale a pena viver?; por que não morrer?; pior, por que não matar? Se o leitor ainda por cima já leu outros 'simenons', como são conhecidos os seus livros, espera ansiosamente pela inter­venção do inspetor de polícia, a talvez o próprio Maigret. Mas este não é um 'maigret'; o inspetor se chama Lucas (lembr­ando ironicamente as certezas do Evangelho), trabalha no mesmo distrito que Maigret mas se mantém à distância pelos movimentos do personagem e pelos truques do narrador.
Como o ex-burocrata e então criminoso foragido Kees Popinga é um exímio enxadrista, 54 seus movimentos parecem se realizar num tabuleiro, levando-nos à segunda metáfora fundamental. O xadrez é consi­derado o mais violento jogo de estratégia, apesar do silêncio e do ritual que o envolve. O xadrez realiza, no tabuleiro, o sonho do controle total. O xadrez é em princípio um jogo de governantes - brinca-se de governas, vale dizer, guerrear. As peças, representações humanas como o cavaleiro, o bispo, a rainha e mesmo os peões, comem/matam umas às outras. Faz parte intrínseca do jogo - e da política, como sa­bemos - sacrificar suas próprias peças. Cada lance envolve van­tagem e, ao mesmo tempo, al­guma desvantage. Apenas sa­bendo-se disso pode-se conse­guir realizar um lance-surpresa, conhecido como Zwischenzug.
A maior das emoções é sacrificar a peça mais poderosa, ou seja, a rainha, para arriscar um xeque-mate. Ora, Popinga sacrifica basicamente suas mulheres. Depois de um de seus crimes, o personagem vai para um bar jogar xadrez. Jogando duas partidas simultâneas com um francês louro e um japonês, naturalmente vence a ambos. Faz questão de lhes pagar uma bebida e de lhes dar uma aula do jogo - 'O importante é ter todas as peças na cabeça o tempo todo, não esquecer que o bispo guarda a rainha, que guarda o cavalo, que (...) é preciso manter o adversário em observação, descobrir-lhe o método, e não ter método próprio. Suponham que eu tivesse o meu - poderia bater um dos dois mas não os dois, porque o segundo teria percebido a minha tática, o que me poria em desvantagem'. 'Não ter método próprio' é também e precisamente o fa­moso método do inspetor Mai­sgret, misturando simpatia por qualquer ser humano com apre­ço pelo próprio inconsciente.
Enquanto comete suas transgressões e dribla a polícia, Popinga anota em um caderno as suas 'jogadas' e as do ins­petor, ao mesmo tempo em que escreve longas cartas aos jor­nais para protestar contra as matérias a seu respeito. As car­tas servem à polícia e a psi­quiatras que se esmeram em estudar aquele caso único, mas para o leitor elas são, ao mesmo tempo, divertidas, esclarecedo­ras e perturbadoras. Divertidas, por causa do contraste entre os crimes e o estilo ultra-formal do criminoso. Esclarecedoras, por­que veiculam uma espécie de 'poética moral' de Simenon. Perturbadoras, enfim, porque tornam lógico o ilógico, veros­símil o inverossímil, compre­ensível o inaceitável.
A narrativa reserva alguns lances-surpresa para o final. O inspetor Lucas conseguirá prender Kees Popinga? Nes­se caso, ele irá para a prisão ou para o hospício? E se... Ora, essas perguntas não se respondem na resenha de um livro como esse. Só podemos dizer que o final faz jus ao livro - principalmente a úl­tima frase. O sebo do riba, na praia grande, tem muitas preciosidades.Clique aqui para ver a sinopse do livro

Nenhum comentário: