29 de ago. de 2016

Impeachment político é golpe, Por Aldo Fornazieri


Desmoralizadas as teses de que a presidente Dilma cometeu crime de responsabilidade, condiçãosine qua non para legitimar a consumação de qualquer impeachment, os arautos do golpe agora se refugiam em outras duas teses estapafúrdias e grotescas: a de que o impeachment é eminentemente político dependendo da vontade política dos congressistas e de que ele deve ter respaldo na mobilização da sociedade. Em artigo anterior mostrei que o conceito de golpe não se aplica apenas à intervenção militar (O golpe, a salvação de Cunha e a história como um equívoco, por Aldo Fornazieri). Ali indica-se que a natureza do golpe consiste no fato de que ele é praticado por autoridades e funcionários públicos e que sua essência consiste na violação da Constituição.
O depoimento do professor Ricardo Lodi no Senado Federal, na condição de informante, nesses últimos dias do julgamento da presidente Dilma, reduziu a escombros a tese de que Dilma cometeu crime de responsabilidade. Lodi mostrou cabalmente que: 1) as chamadas “pedaladas fiscais”, que não são um conceito jurídico estabelecido em nenhum documento, não constituem crime de responsabilidade, pois não há nenhum prazo legalmente estabelecido para que o governo salde os breves débitos junto aos bancos públicos. O governo Dilma saldou esses débitos, no máximo, em quatro meses, o que está dentro de um limite de razoabilidade; 2) em 2015, o governo Dilma cumpriu a meta fiscal, redefinida pelo Congresso no final do ano. Mesmo que o governo não tivesse cumprido a meta fiscal não seria crime de responsabilidade, pois as contingências da economia podem impedir que um governo cumpra a meta fiscal. O que constitui crime de responsabilidade é o não cumprimento da Lei Orçamentária, coisa de que Dilma não é acusada; 3) os decretos suplementares não constituem crime de responsabilidade, pois há uma compatibilidade entre decretos complementares e contingenciamento do orçamento. Assim, os decretos de suplementação não elevam execução de despesa pública; 4) ademais, quanto a autoria dos decretos, eles são definidos por lei e não são de responsabilidade direta da presidente. Os próprios técnicos do Senado haviam concluído que Dilma não é responsável pelos decretos.
Então o que se tem é o seguinte: não há crime de responsabilidade. Porém, se quer julgar Dilma por prazos que legalmente não existem e se quer imputar a ela reponsabilidade que a lei atribui a autoria de terceiros. Impeachment sem crime de reponsabilidade, como tanto o disseram, é golpe. Impeachment que se reduz à vontade política dos congressistas é golpe. Impeachment que se fundamenta na vontade majoritária da população e em manifestações de rua, sem crime de responsabilidade política, é golpe.
O fundamento do impeachment deve ser jurídico


Os mistificadores de plantão sustentam que o impeachment é um processo político. Nada mais falso. Ele é um processo jurídico que produz consequências políticas, pois cessa o mandato de um presidente eleito pelo povo. Para entender a natureza e essência jurídica do processo impeachment é preciso ir à sua fonte: a Constituição dos Estados Unidos. O mecanismo se estrutura no âmbito da teoria dos equilíbrios, freios e contrapesos do republicanismo moderno. O impeachment foi criado como um contrapeso dado ao Legislativo em face do peso dado ao Executivo pelo poder de veto do Presidente da República. O inciso 6 do Artigo I da Constituição americana afirma o seguinte: “Caberá exclusivamente ao Senado julgar todos os processos de crime de responsabilidade (impeachment). Quando este estiver reunido para tal fim, os Senadores prestarão juramento ou compromisso. O julgamento do Presidente dos Estados Unidos será presidido pelo Presidente da Suprema Corte...”.
No Artigo II, seção IV se complementa afirmando que “o Presidente, o Vice-Presidente e todos os funcionários dos Estados Unidos serão destituídos de seus cargos quando forem acusados e condenados, em processo de impeachment, por traição, suborno ou outros crimes e delitos graves”. Nos Estados Unidos, o processo de impeachment é uma imputação tão grave que até hoje, desde 1787, somente três presidentes tiveram processos abertos e nenhum perdeu o mandato em julgamento final. Richard Nixon perdeu a presidência por renúncia e não por julgamento. No Brasil, em apenas 28 anos da nova Constituição tempos dois impeachaments. Está claro aqui que o impeachment não pode ser banalizado como instrumento de luta política, como é o atual caso brasileiro.
A Constituição brasileira é um reflexo da Constituição americana neste ponto. Então note-se que o Senado só poderá julgar o Presidente em face de crime de responsabilidade e não pelo fato do governo ser mal avaliado, pelo “conjunto da obra” ou porque o governo cometeu erros políticos, administrativos ou contábeis. O inciso 7 define que a consequência do julgamento do Senado é política: reduz-se à perda do mandato e/ou a inabilitação para cargo público.
O constitucionalismo norte-americano entende que os Pais Fundadores definiram a necessidade da presidência do Senado pelo presidente da Suprema Corte no processo de julgamento justamente para evitar que o julgamento seja político. O Senado simplesmente julga em face de uma acusação formulada pela Câmara dos Deputados. No processo de julgamento, o Senado se transforma em tribunal e o único juiz ali presente é o presidente da Suprema Corte. Ao contrário do que se diz aqui no Brasil, os senadores não são juízes, mas jurados.
Os golpistas violam a Constituição
O golpe contra a presidente Dilma emergiu de várias ramificações e conspirações: da vice-presidência da República, da presidência da Câmara, de setores do judiciário e do Ministério Público, de integrantes do STF, da Política Federal, de senadores e de dentro do Tribunal de Constas da União. Na verdade, foi no TCU onde o golpe foi cevado.
Nos depoimentos no Senado e na argumentação da defesa da presidente Dilma ficou cabalmente demostrado que, tanto nas chamadas pedaladas fiscais quanto nos decretos de suplementação, nada foi feito que ficasse fora da jurisprudência estabelecida, inclusive pelo próprio entendimento do TCU, seja em relação a governos anteriores, seja em relação ao governo Dilma até 2014. Foi demostrado também que, dada a falta de sustentação jurídica para o  impeachment, o TCU foi mudando sua interpretação em relação aos atrasos dos pagamentos aos bancos públicos e aos decretos de suplementação. Essa mudança de intepretação ocorreu em outubro, quando os débitos com os bancos já tinham sido quitados e os decretos de suplementação assinados. Os defensores do impeachment sustentam a tese do crime de responsabilidade justamente com base nessa nova intepretação do TCU.
É justamente aqui que há uma clara violação da Constituição: pretende-se fazer que a interpretação do TCU retroaja no tempo como uma lei ex post facto. A Constituição americana proibiu explicitamente este tipo de lei por entender que ela fere direitos e que, portanto, a sua proibição é uma garantia do Estado de Direito. O Artigo 5º, inciso XXXVI da nossa Constituição Federal diz que “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e coisa julgada”, o que equivale à proibição de leis ou interpretações de leis retroativas.
Se a essência do golpe se caracteriza pela violação da Constituição eis aqui os dois atos que a violam: julgar a presidente sem crime de responsabilidade e tentar  estabelecer a retroatividade de uma interpretação do TCU, violando o artigo 5º da Constituição. Como o golpe é um crime contra a Constituição brasileira, há que se lutar para que os golpistas sejam afastados do poder e julgados. Se o STF não tivesse se acovardado, já teria extinto o processo de impeachment por ser improcedente. O STF é Corte Constitucional e é seu dever impedir que a Constituição seja violada pelos poderes da República e por seus funcionários. O ministro Ricardo Lewandowski, como presidente do tribunal que julga (o Senado), deveria fazê-lo nestes últimos momentos angustiantes de um processo que fere gravemente a democracia brasileira.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Enviado por Eri Santos Castro.
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