"A lição das urnas mostra que a ausência de um partido
hegemônico – pela esquerda, com um programa autêntico de construção da nação e
capaz de consolidar o Estado Social de Direito – é a principal barreira que
devemos superar"
Tarso Genro:um dos principais quadros da esquerda mundial. |
Um brilhante artigo do
Professor Roberto Amaral, "Os desafios das esquerdas fragmentadas",
oferece um roteiro excepcional para o debate que devemos abrir, em defesa da
democracia e da república, no momento em que as urnas sinalizam, não somente o
fim da hegemonia petista, no âmbito da esquerda, mas eficácia das novas formas
de luta – já assumidas em todo o mundo – pela direita conservadora rentista.
Esta, aliada com os centros de inteligência neoliberais, pautada pelo
oligopólio da mídia, que exige as "reformas" no Estado Social, conta,
de um lado, com a decadência das formas tradicionais de fazer política –
assumidas pelo PT – como partido hegemônico, e, de outro, com o
"cansaço" da democracia, que não consegue mais dar estabilidade a
conquistas sociais, nem vitalidade às liberdades políticas.
O PT teve muitas
candidaturas dignas e autênticas, como as de Raul Pont e Fernando Haddad – para
mencionar apenas duas capitais – e outras tantas por este Brasil afora, mas, em
regra, teve um desempenho pífio ou dissolveu-se em alianças regionais de
conveniência, sem se dar conta que, na verdade, esta eleição seria um pleito de
recomeço e não de continuidade da política de resistência contra o impedimento
da Presidenta. Este, de resto, já era (e é) fato político consolidado, mesmo
grande parte da população tendo consciência que foi enganada sobre os
propósitos da sua derrubada, que ocorreu para que seja feito um
"ajuste" profundo, na economia, não para combater a corrupção.
Toda a falência do
nosso sistema de alianças pode ser sintetizada num dos exemplos, entre os
vários dados pelo professor Amaral, no texto referido: como explicar que o PT,
em Olinda, não tenha apoiado Luciana Santos, presidenta nacional do PCdoB, e
este partido – em Recife – tenha apoiado o candidato da direita, contra João
Paulo do PT, sabidamente um homem do campo da esquerda? Quando se levanta esta
perplexidade, não está se buscando "responsabilidades" locais, pois,
de resto – em momentos eleitorais – as forças políticas locais se movem pragmaticamente,
quando não ocorre uma intervenção de um centro dirigente legítimo. O que está
se buscando é visualizar quais as estratégias nacionais, que estes partidos
adotam, para "naturalizar" tal fragmentação, bem como o sentido de
responsabilidade histórica, que definem na conjuntura atual, para permitir que
os seus agentes políticos se movam com esta leveza sem estratégia.
Na verdade, parece que
estes partidos do campo da esquerda agem como se o país não transitasse por um
processo político de "exceção", como se o Estado Social de Direito
não estivesse sendo desmantelado, como se a hidra do fascismo não estivesse
levantando uma das suas cabeças, como se o "ajuste" em curso – que
integra de forma definitiva o Brasil na tutela do "rentismo" global –
(e faz a sua própria base social sólida), fosse um mero acidente de percurso.
Na verdade, todavia, é sabido que estes ajustes só são aplicáveis quando as
corrupções contingentes, de qualquer Estado, tornam-se modo estrutural
definitivo de governabilidade, como está correndo no Brasil.
Não vou dar exemplos
da falta de estratégia democrática de outros partidos, mais além do que
pontuais, porque a finalidade deste artigo não é, neste momento, travar uma
polêmica com os que se colocam "à esquerda", desta aliança do PT com
o PCdoB, que deveria informar um sistema de alianças mais amplo, tanto à
esquerda como à sua "direita". A ideia é refletir sobre os erros –
principalmente do PT como partido hegemônico – no campo que defendeu a
ilegitimidade do golpe contra a Dilma e foi o alvo principal de uma sistemática
campanha de destruição, pelo oligopólio da mídia, inclusive nos dias próximos à
eleição.
Coloco na minha breve
abordagem a seguinte pergunta: o que faz o PT – por exemplo -lançar a
candidatura em Belém, de Regina Barata (1,71%) – paralela à candidatura de
Edmilson, do PSOL (30%) – , numa eleição em que este, homem de esquerda e
gestor excelente enfrentava, já no primeiro turno, um forte candidato do PSDB,
que hoje é o principal repositório do golpismo pós-moderno, no país? Reputo que
com esta postura -independentemente das suas intenções nobres – o PT reflete a
mesma concepção de fundo do PSOL (embora o faça com viés burocrático), pela
qual ele se avoca o mais importante representante da esquerda, deixando de lado
a melhor candidatura, para enfrentar o adversário comum.
Esta posição
exclusivista, seja do PT, que chega nela pela via burocrático eleitoral, seja
do PSOL – que a defende em vários lugares como uma estratégia socialista –
retira do centro do conflito eleitoral a questão democrática, que tinha sido
superada na Constituição de 88, agora golpeada por um Congresso sem
legitimidade. Se a questão democrática não for, hoje, no país, a questão mais
decisiva a ser enfrentada por uma frente política novo tipo – que passe inclusive
por dentro dos processos eleitorais – meu raciocínio está errado. Mas, se estou
certo, os resultados eleitorais nos centros políticos mais importantes do país
consolidaram o Governo Temer, reforçaram o PSDB e atrasaram a unidade popular
para enfrentar a exceção.
Quero lembrar, ainda,
outro aspecto que me parece extremamente relevante. Trata-se de um fato
histórico de alta complexidade, através do qual a questão democrática e
nacional, foi retomada pela direita por outra via, pela qual a suposta defesa da
nação (contra o comunismo) não se tornou em nenhum momento dominante. Isso
permitiu falsear ao extremo os interesses de classe tradicionais, que
envolveram os surtos autoritários de períodos anteriores: a soberania popular
foi revogada no país, em nome da luta contra corrupção, mas o seu propósito era
e é – com ou sem corrupção – aplicar um programa claro de natureza econômica,
para integrar de forma profunda o Brasil no domínio do "rentismo"
global. Este faz e amplia a sua própria base social e política no processo de
reformas, que tem o apoio de diversos partidos e frações de partidos e que
tinha se aninhado inclusive dentro do próprio PT.
Em suma, a lição das
urnas mostra que a ausência de um partido hegemônico – pela esquerda, com um
programa autêntico de construção da nação e capaz de consolidar o Estado Social
de Direito – é a principal barreira que devemos superar, para que o campo
popular e democrático no país recupere a iniciativa e enfrente o golpismo
amplamente vitorioso nas eleições deste ano.
Por Tarso Genro, 65, é ex-governador do Rio Grande do Sul. Foi ministro da Justiça, da Educação (ambos no governo Lula), prefeito de Porto Alegre pelo PT (1993-1996 e 2001-2002) e um dos principais quadros da esquerda mundial.
Enviado por Eri Santos Castro.
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