8 de jun. de 2015

A evangelização da política e a contra-reforma, por Aldo Fornazieri

O vácuo político aberto pela crise do PT e do governo vem sendo ocupado de forma paulatina, mas agressiva, por um núcleo conservador liderado pela Frente Parlamentar Evangélica (FPE) e pontificado por Eduardo Cunha. A FPE é relativamente pequena, integrada por 75 deputados ou por 14,6% do total de parlamentares. Mas seu poder e influência extrapola, de forma significativa, o seu tamanho, tornando-se uma espécie de centro político dirigente da Câmara dos Deputados. 
O poder e a força da FPE se alicerça em quatro fatores: 1) com Eduardo Cunha na presidência, evangélicos passaram a ocupar postos importantes na estrutura legislativa e administrativa da Câmara; 2) as teses conservadoras, principalmente no plano moral, encontram respaldo significativo na sociedade; 3) com um Congresso predominantemente conservador, as teses dos evangélicos encontram terreno fértil de irradiação até mesmo entre deputados católicos; 4) o PT, que vinha sendo o centro de proposição e emulação das propostas progressistas no Congresso, encontra-se em crise, com baixa capacidade propositiva e dirigido por lideranças fracas.
Não se pode dizer que a FPE age centralizada em todos os temas. Na votação do PL da Terceirização, por exemplo, 15 deputados evangélicos votaram contra o Projeto. Ainda é cedo para dizer se a FPE poderá liderar um processo de contra-reforma nos avanços sociais e distributivos que o país conquistou nos últimos anos.
Mas esta possibilidade deve ser acompanhada e não pode ser descartada. A contra-reforma liderada pela FPE fica mais evidente no plano dos temas morais, da sexualidade e dos direitos humanos. Nestes temas, de fato, direitos estão ameaçados. Ao defender os valores tradicionais cristãos da família e da moral, a FPE coloca-se em linha de choque com as plataformas feministas, LGBTs e dos defensores dos direitos humanos. Outro tema que é objeto de ativismo dos evangélicos e dos conservadores em geral é a Projeto de Lei da redução da maioridade penal.
Mesmo sem o conhecimento e a disponibilidade de dados que mostrem a exata extensão da criminalidade praticada por menores, a Câmara dispõe-se a votar o tema de tamanha gravidade sob a pressão do temor de uma sociedade assolada pela violência generalizada. É em torno desses valores e temas que a FPE encontra um campo fértil para alianças com políticos católicos e com outros setores conservadores do Congresso.
Se a FPE se mostra moralizadora no campo dos valores e dos costumes, não o é, necessariamente, no campo da prática e da conduta política. Vários parlamentares evangélicos já se viram envolvidos em denúncias de fisiologismo e de corrupção. O próprio presidente da Câmara está sendo investigado na Operação Lava Jato. Esta situação comprova, mais uma vez, que Maquiavel tinha razão: a política tem uma moral própria que difere da moral cristã. As duas morais podem coincidir em determinadas circunstâncias, mas o político virtuoso não deve hesitar em contrariar a moral cristã para beneficiar o bem comum do povo e os interesses do Estado. No caso dos evangélicos ocorre o contrário: eles não hesitam em contrariar a virtude política, quanto se trata dos interesses pessoais, do grupo ou de suas respectivas igrejas.
A Contra-Reforma Política
Se na ação da FPE a contra-reforma social é uma possibilidade e a contra-reforma moral é uma investida, a contra-reforma política assume contornos de realidade. A contra-reforma política se dirige a duas direções: a) uma redução do caráter laico do Estado; b) retrocessos no processo de votação da Reforma Política. O Estado brasileiro já sofre deficiências laicas por conta da sua ligação histórica com a Igreja Católica. Na medida em que as igrejas evangélicas cresceram em número de fiéis e em poder político e social, pretenderam conquistar espaços e privilégios na sua relação com o poder político e com o Estado.
O pluralismo religioso e o Estado laico são conquistas civilizatórias que não podem ser desfeitas, sob o risco de o Brasil presenciar o surgimento de novos conflitos perigosos e desnecessários. Eduardo Cunha teve a ousadia de comandar um culto evangélico nas dependências da Câmara dos Deputados, fazendo da Casa da representação da sociedade uma extensão das igrejas evangélicas. Ademais, feriou o Artigo 19 da Constituição que veda essas práticas em dependências públicas.
Em relação à Reforma Política, se o mal maior do Distritão foi evitado, a Câmara não deixou de aprovar algo grave, que é o financiamento empresarial dos partidos. 
Nos demais temas tudo tende a permanecer como está, mas a aprovação do financiamentoempresarial dos partidos aumentará ainda mais o peso do poder econômico sobre o sistema político e desobrigará ainda mais os partidos de manterem vínculos com a sociedade e movimentos e grupos sociais.
Financiados pelo poder econômico e por verbas públicas, não dependerão de militantes ativos para fazerem suas campanhas e para arrecadarem recursos. A fissura entre a representação política e a cidadania deverá aumentar. Reivindicada nas ruas, defendida pelos políticos, a Reforma Política caminha para agravar ainda mais a crise de representação, a principal causa das atuais incapacidades e impasses que vive o sistema político brasileiro. Em suma: não se deve descartar a possibilidade de que a FPE se torne o embrião da construção de uma alternativa conservadora para as eleições de 2018.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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