Lamarca, o nosso Che Guevara
O que há, ainda, para se dizer
sobre Lamarca, o personagem brasileiro mais próximo de Che Guevara, por
história de vida e pela forma como encontrou a morte?
Foi, acima de tudo, um homem
que não se conformou com as injustiças do seu tempo e considerou ter o
dever pessoal de lutar contra elas, arriscando tudo e pagando um preço
altíssimo pela opção que fez.
Teve enormes acertos e também
cometeu graves erros, praticamente inevitáveis numa luta travada com
tamanha desigualdade de forças e em circunstâncias tão dramáticas.
Mas, nunca impôs a ninguém
sacrifícios que ele mesmo não fizesse. Chegava a ser comovente seu zelo
com os companheiros -- via-se como responsável pelo destino de cada um
dos quadros da Organização e, quando ocorria uma baixa, deixava
transparecer pesar comparável ao de quem acaba de perder um ente
querido.
Dos seus melhores momentos, dois me sensibilizaram particularmente.
Logo depois do Congresso de Mongaguá (abril/1969), quando a VPR saía de uma temporada de luta interna e de quedas
em cascata, o caixa estava a zero e a rede de militantes, clandestinos
em sua maioria, carecia desesperadamente de dinheiro para manter as
respectivas fachadas -- qualquer anomalia, mesmo um atraso no pagamento de aluguel, poderia atrair atenções indesejáveis.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.
Mas, o chamado grupo tático fora o setor mais duramente golpeado pelas investidas repressivas.
Eu e os sete companheiros
secundaristas que acabáramos de ingressar na Organização fomos todos
escalados -- na enésima hora, entretanto, chegou a decisão do Comando,
que me designou para criar e coordenar um setor de Inteligência, então
fiquei de fora.
Lamarca, procuradíssimo pelos órgãos repressivos, fez questão de estar lá para proteger os recrutas no seu batismo de fogo.
Os outros quatro comandantes tudo fizeram para demovê-lo, em nome da
sua importância para a revolução. Em vão. A lealdade para com a tropa nele falava mais alto.
Depois de muita discussão,
chegou-se a uma solução de compromisso: ele não entraria nas agências,
mas ficaria observando à distância, pronto para intervir caso houvesse
necessidade.
Houve: um guarda de trânsito,
alertado por transeunte, postou-se na porta de um dos bancos, arma na
mão, pronto para atingir o primeiro que saísse.
Lamarca, que tomava café num
bar a 40 metros de distância, só teve tempo de apanhar seu .38 cano
longo de competição, mirar e desferir um tiro dificílimo -- tão
prodigioso que, no mesmo dia, a ditadura já percebeu quem fora o autor.
Só um atirador de elite seria capaz de acertar.
Segundo o Darcy Rodrigues, foi a
vida dele que Lamarca salvou. O próprio, contudo, contou-nos que seria
um dos novatos o primeiro alvejado.
Como resultado, a repressão teve pretexto para fazer de Lamarca o inimigo público nº 1
-- e, claro, o fez. A imagem dele foi difundida à exaustão,
obrigando-o a redobrar cuidados e até a submeter-se a uma cirurgia
plástica.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Também teve de brigar muito com os demais dirigentes e militantes, para salvar a vida do embaixador suíço Giovanni Butcher, quando a ditadura se recusou a libertar alguns dos prisioneiros pedidos em troca dele e ainda anunciou que o Eduardo Leite (Bacuri) morrera ao tentar fugir.
Dá para qualquer um imaginar a indignação resultante -- afinal, as (dantescas) circunstâncias reais da morte do Bacuri ficaram conhecidas na Organização.
Mesmo assim Lamarca não arredou
pé, usando até o limite sua autoridade para evitar que a VPR desse aos
inimigos o monumental trunfo que as Brigadas Vermelhas mais tarde
dariam, ao executarem Aldo Moro. O episódio foi tão traumático que ele
acabou deixando a VPR.
E, no MR-8, novamente divergiu da maioria dos companheiros -- quanto à sua salvação.
Pressionaram-no muito para que
saísse do Brasil, preservando-se para etapas posteriores da luta, pois
em 1971 nada mais havia a se fazer. Aquilo virara um matadouro.
Conhecendo-o como conheci,
tenho a certeza absoluta de que não perseverou por acreditar numa
reviravolta milagrosa. Em termos militares, suas análises eram as mais
realistas e acuradas. Nunca iludia a si próprio.
O motivo certamente foi a incapacidade de conciliar a idéia de fuga
com todos os horrores já ocorridos, a morte e os terríveis sofrimentos
infligidos a tantos seres humanos idealistas e valorosos. Fez questão
de compartilhar até o fim o destino dos companheiros, honrando a
promessa, tantas vezes repetida, de vencer ou morrer.
Doeu -- e como! -- vermos os militares exibindo seu cadáver como troféu, da forma mais selvagem e repulsiva.
Mas, ele havia conquistado
plenamente o direito de desconsiderar fatores políticos e decidir
apenas como homem se preferia viver ou morrer.
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Editado por Eri Santos Castro.
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