Honoráveis Farsantes
Edson Vidigal
A tristeza amanhece cansada em lágrimas e desconfortos, os olhos
indormidos, as expressões de uns repetindo-se nos outros e, como numa
desobriga, a mesma cena escorrendo na capela do cemitério pelo dia
inteiro.
Quem numa hora dessa não se abre a um ombro amigo, a uma palavra de
apoio, a uma oração de fé?
Há uma desolação coletiva, uma sensação de desamparo, as almas
devastadas pelo vazio denso que só a perda de alguém muito querido
causa. A dor de ver a morte vencendo a vida é mais profunda, é
irremediável.
É nesse espaço de carências que aparece o farsante.
Chega cedo ao cemitério, veste-se de padre, ronda a capela e fica
peruando os velórios, um por um, que ao longo do dia, até no fim da
tarde, ainda vão acontecer.
São católicos? Pergunta como quem declara uma identidade. Sim. Todos
geralmente o são.
Ele sabe que por aqueles mundos desprezados, itinerários de abandonos,
onde já são poucas as arvores a fazerem sombras, as raízes lá embaixo
na promiscuidade com os ossos restantes nos fundos das sepulturas, as
esperanças até se diluem como as hóstias nas línguas úmidas dos
contritos.
Ele sabe que em chãos de tantos atrasos as pessoas que chegam ao
cemitério para enterrarem os seus mortos amolecem na disposição de
seguirem em frente como se acreditassem que o horizonte acaba ali, na
cova na qual um dia irão também desabar.
O farsante se aproveita das emoções em pranto, da tristeza no clima,
do desalento geral. Ele se apresenta como intermediário divino, o
porta - voz do conforto e da fé, a mão estendida da salvação, o
portador da única bussola confiável e por isso pode ordenar a todos –
sigam-me!
Está vestido de sacerdote, mas não é sacerdote. Fala manso numa
entonação litúrgica, mas não é o padre. Abre a Bíblia espalmando-a
sobre as duas mãos, recita versículos, não é esta a sua missão. Não
estudou para isso.
As pessoas pranteando os seus mortos, um após o outro, na capela
apertada daquele pedaço de Brasil distante em que o exercício de viver
se confunde com o não esperar por mais nada a não ser morrer, ainda em
reservas de fé, mas não sabendo mais no que ainda crer, caem fácil,
fácil, na lábia do farsante.
O sermão se confunde com o discurso e vice versa ou com a mesma coisa
ao contrário. Abaixem as cabeças que lá vêm os maribondos, ah meu
Deus, só faltava essa, até aqui tem maribondos? Por um milésimo de
segundo a tristeza sorri.
Como dizia o poeta, mas se existe Jesus no firmamento, cá na terra
isso tem que se acabar. O farsante ignora o poeta, o seu clamor pela
igualdade, não quer entrar em bola dividida, seu negócio é consolar os
parentes e os amigos dos mortos, atirar a água benta no caixão do de
cujos e encomendar sua alma a um destinatário que nem ele sabe.
Depois, é claro, ele diz ao dono do defunto que não cobra nada pelos
serviços fúnebres, mas que tem uma fundação, uma obra de caridade, e
dá então a facada para pegar um dinheirinho.
Cemitérios em chãos dos infernos de tão pobres parecem favelas. É uma
sepultura por cima da outra, ossos de um lá embaixo por cima dos ossos
de outro. Daí que entendo por que essa preferência de alguns por
sepulturas prévias longe dos cemitérios e tão enormes.
O farsante que se faz passar por padre sabe que não vai durar muito
com esse golpe. Logo alguém o pressentirá farsante e a policia irá
atrás dele.
Por isso, cuidado. De repente, aparece alguém por aí com pinta de
salvação, cerimonioso e gentil, querendo saber.
São maranhenses? Pergunta como quem declara uma identidade. Sim. Todos
geralmente o são.
Pode ser o mesmo farsante. Ou um outro muito parecido.
Acesse o meu blog – www.EdsonVidigal.com
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