2 de dez. de 2007

A desesperada travessia de dois meses da família real portuguesa para o Brasil

A família real portuguesa só chegou ao Rio de Janeiro em março de 1808, depois de passar em fevereiro por Salvador, na Bahia, mas as comemorações do bicentenário da chegada ao Brasil começaram oficialmente nesta quinta-feira, 29 de novembro. Ao raiar do sol deste dia de 1807, o príncipe Dom João, sua família, seu governo e sua corte, já com o exército francês invadindo os arredores de Lisboa, partiram às pressas do porto de Belém, sob proteção da poderosa esquadra inglesa, liderada pelo famoso almirante sir Sydney Smith.
Graças à recente publicação, inédita no Brasil, do relato “conciso e apurado”, escrito em 1810 pelo conde irlandês e tenente da Marinha britânica Thomas O’Neil, poderemos agora saber, de uma fonte primária, como foi caótica a aventura da única realeza européia que atravessou o Atlântico para escapar de Napoleão Bonaparte. O pequeno livro em inglês sobre a “fuga da família real de Portugal para o Brasil” e os “sofrimentos dos fugitivos reais” é um documento histórico raro: foi distribuído na época em Londres apenas para cerca de 1.700 nobres subscritores da obra.
Com um título mais honroso em português – “A vinda da família real portuguesa para o Brasil”-, o texto de O’ Neil pôde chegar enfim aos leitores brasileiros porque o bibliófilo José Mindlin, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), cedeu seu precioso exemplar para a Comissão do Bicentenário criada pela prefeitura do Rio de Janeiro. Que, por sua vez, o repassou à editora José Olympio para ser fotografado e traduzido.
O depoimento do conde é, primeiramente, um hino de louvor à ação dos britânicos em guerra contra Bonaparte, “o infame símbolo de Lúcifer” - com quem Dom João tentou contemporizar até a última hora, enquanto assinava acordos secretos com os ingleses. Mas não deixa de nos trazer registros vivos e ricos, quase em tom de reportagem, sobre o que viu e ouviu naqueles dramáticos dias que mudariam a história do Reino Unido de Portugal e Brasil. Nesta edição, a versão do marinheiro irlandês é contextualizada pelo cuidadoso prefácio de Lilia Moritz Schwarcz, que aponta inclusive equívocos factuais.
União das frotas e bandeiras - Vejamos o que nos diz a testemunha ocular do momento da partida. “No dia 29, às sete horas, a manhã estava linda: uma brisa agradável soprava do quadrante leste fazendo com que os navios portugueses deslizassem diretamente para fora do Tejo (...). Tivemos então a profunda satisfação de ver nossas esperanças e perspectivas se realizarem totalmente: toda a frota portuguesa se dispôs sob proteção de Sua Majestade, enquanto disparava uma saudação recíproca de 21 salvas.” Emocionado com o “espetáculo raro de se ver” da junção dos navios e das bandeiras de Portugal e Inglaterra, O’Neil não omite, entretanto, que o único espectador insensível à “cena de sublime beleza” era o “Exército francês que estava nas colinas”.
Thomas O’Neil também não esconde outros fatos pouco edificantes para a história oficial: a correria da família real para chegar ao porto de Lisboa trazendo em cinco horas 700 carros com seus últimos pertences; o desespero da multidão, estimada por ele em cerca de 10 mil pessoas, que lotaram do dia 25 ao dia 28 o porto, sem garantia de embarque; a má condição e o mau preparo das embarcações portuguesas; a falta de provisões e acomodações em várias naus. Ele destacou ainda o sofrimento das mulheres. “Muitas senhoras distintas entraram na água na esperança de alcançar os botes, mas algumas, desgraçadamente, morreram”.
Obrigado a transferir-se temporariamente do London para a fragata Oliveira, revelou que passou o Natal sem ter o que comer, porque o estoque de arroz, única ração existente, terminara. Segundo seus cálculos, entre 16 mil e 18 mil portugueses abandonaram Lisboa, abrigados em uma frota que ultrapassaria, incluindo dezenas de navios mercantes, mais de 50 embarcações. O’Neil também registra que no mar, como em terra firme, Dom João (que ficava em Mafra) e Carlota Joaquina (em Queluz) mantiveram-se separados. Durante os dois meses de travessia, ele ficou no Príncipe Real; ela, no Afonso de Albuquerque.

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