3 de dez. de 2007

Bergman , Antonioni e o que faz a pena a vida

Quase tudo foi escrito sobre a vida, a obra e a morte de Ingmar Bergman e de Michelangelo Antonioni, meses atrás, quando da morte de ambos.

Se a expressão artística de um não se relacionava com a do outro, o que os uniu, além da morte quase simultânea, foi a extraordinária sensibilidade desses dois grandes filósofos do cinema.

Bergman, o introvertido sueco, contraditoriamente (ou justamente por ser sueco e introvertido) usando a ferramenta da palavra e da linguagem falada nos longos diálogos que irrigaram as imagens memoráveis dos seus filmes, nos quais se vê o ser humano, obsessivamente, procurando exprimir-se.

Foi um leitor e admirador de Carl Jung e devia conhecer bem o fenômeno relatado pelo psicanalista, enantiodromia, a dança psíquica dos opostos que se atraem e, não raro, trocam de lugar – no caso, a personalidade introvertida produzindo de modo extrovertido.

Antonioni, ao contrário, embora filho de uma cultura verborrágica e para fora, mostrou em imagens desoladas, lentas, dos grandes desertos e dos espaços vazios, o vasto silêncio que nos envolve apesar do inútil, pueril, mas incessante esforço do ser humano para fazer-se entender. Seus silêncios remetiam aos tempos cinematográficos dos artistas orientais e às imagens das realidades invisíveis.
Os dois, assim, cada qual ao seu modo, nos falaram, com uma pungência toda especial, sobre a incomunicabilidade que, sem remédio, nos des -une.

No Rio de Janeiro dos meados dos anos sessenta, cada filme de Bergman e de Antonioni lançados nos cinemas significava um grande acontecimento cinematográfico e cultural que mobilizava as platéias. Criavam-se grandes filas nas bilheterias e, depois, nas mesas dos bares e dos botequins da zona sul, muitos discutiam até altas horas o que tínham acabado de ver, todos surpresos e atordoados com aqueles filmes que não cabiam nem nas referências do até então vigoroso e ativo cinema americano nem na narrativa romântica e acadêmica do cinema francês e muito menos no cinema do sumo sacerdote Fellini.

Achavam que Antonioni propunha enigmas - como o desaparecimento, sem explicações, da personagem de Mônica Vitti, durante a saída de barco com um grupo de amigos, em A Aventura. Ou a angústia seca de Jeanne Moreau em A Noite , no caminhar sem fim e sem destino.
Discutiam os signos da obra de Antonioni (era também época do auge da moda de leituras de Roland Barthes) e sua forma de apresentar, em lentas imagens, a incapacidade do ser humano de verdadeiramente se comunicar.

Os filmes de Bergman, então, eram analisados pelo viés das teorias da psicoterapia de Jung cujos livros começavam a fazer barulho no Brasil. Tipos Psicológicos , assim como o célebre volume das memórias, Minha Vida , na época recém-lançado em Paris, eram referência e leitura obrigatória para os que conviviam com a cultura hippie e cuja curiosidade intelectual se voltava para a arte e as manifestações espirituais do Oriente e para as culturas, religiões e símbolos africanos – as searas de Jung.

Para os que se aventuravam nos primeiros tratamentos psíquicos junguianos, no Rio e São Paulo trazidos pelos médicos recém chegados do Instituto Junguiano, de Zurique, os filmes de Bergman (e também os de Antonioni) eram um prato cheio.

Os freudianos detestavam Jung, a quem chamavam de “místico”, mas, honestamente, não podiam deixar de admirar Persona (o nome, inclusive, de uma categoria junguiana) ou o que os rostos de Bibi Anderson e Liv Ullmann em O Silêncio desejavam exprimir.

Nesse tempo sem prozac e sem a brutal pressão de hoje, a qual tornou socialmente inaceitável a exposição pública da depressão, os deprimidos se encontravam nos personagens dos filmes do sueco e do italiano e se debulhavam na “ fossa”, sem vergonha ou culpa. Mônica Vitti era a musa dos enigmas, e Liv Ullmann um dos símbolos da angústia, mal de uma época.

Em um texto publicado em 1958 na revista francesa Arts, Godard descobre o talento magistral de Bergman em Mônica e o Desejo, recém lançado na Cinemateca de Paris dentro de uma retrospectiva do diretor. A cidade está aos seus pés, fascinada com seus filmes e Godard escreve: “ É um filme do mais original dos cineastas e é para o cinema de hoje o que O Nascimento de uma Nação foi para o cinema clássico”.Elege Bergman como o cineasta do instante - “Sua câmera busca uma coisa apenas: captar o momento presente no que ele tem de mais fugidio e aprofundá-lo até que adquira valor de eternidade” – e diz que é “o único a saber filmar os homens do ângulo das mulheres – que os amam, mas que os detestam – e as mulheres do ângulo dos homens – que as detestam, mas que as amam”.

Passada uma geração, quase trinta anos depois, em 1980, Roland Barthes era quem saudava Antonioni na cerimônia de entrega do premio Archiginnedio d'Oro, concedido ao cineasta. Pouco mais tarde, mesmo preso em uma cadeira de rodas e com extrema dificuldade para dirigir filmes, auxiliado por Win Wenders, Antonioni ainda assim faz Além das Nuvens, e mostra a finura das suas imagens e a extrema delicadeza dos sentimentos de seus personagens.
“Você trabalha para tornar sutil ” observa Barthes, se dirigindo ao cineasta, “o sentido daquilo que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não pára grosseiramente na coisa dita, mas vai indo cada vez mais longe, fascinado pelo extra-sentido, é a convicção, creio, de todos os artistas cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas um fenômeno estranho, a vibração”. E compara: “De certa maneira sua arte, caro Antonioni, tem alguma relação com o Oriente”.

Na semana em que Bergman morreu, Woody Allen filmava em Oviedo, na Espanha, e foi procurado pela imprensa de todo o planeta para falar. Sua relação estreita com o sueco era conhecida e havia a imensa admiração, o respeito e a influência que alguns críticos viam no seu trabalho, apesar de Allen sempre negar: “Como ele poderia ter me influenciado? Era um gênio e eu não sou um”.

É emocionante o texto escrito, então, por Woody Allen, quando se refere a O Sétimo Selo e ao jogo de xadrez entre o Cavaleiro e a Morte: “ Da mesma forma, num dia de verão de julho, Bergman, o grande poeta cinematográfico da mortalidade, não pôde prolongar seu próprio xeque-mate, e o melhor cineasta do meu tempo se foi”.

Na elegia, Woody lembra que ele era um “homem amável, divertido, gostava de fazer piadas, inseguro quanto a seus imensos talentos, encantado pelas mulheres”. E revela: “Para dormir, assistia a algum filme que não o fizesse pensar, para relaxar sua ansiedade; às vezes um filme de James Bond”.

E lembra: “Seus poemas de celulóide eram freqüentemente profundos. Mortalidade, amor, arte, o silêncio de Deus, a dificuldade das relações humanas, a agonia das dúvidas religiosas, casamentos falidos, a inabilidade das pessoas em seu comunicarem”.

Muito provavelmente, os dois, morrendo na mesma semana, de algum modo quiseram sair da cena medíocre de um mundo que não é mais o deles. Antonioni, como diz Barthes, já não podia mais filmar, expressando, assim como Matisse fazia com sua arte, os espaços vazios entre as coisas (Matisse pintava os brancos entre os galhos das oliveiras. Para além do objeto “oliveira”).

De Antonioni, recordo sua voz doce, baixa e contida, no telefone, em Roma, nos diversos contatos que tivemos, nos quais nós dois tentávamos marcar uma entrevista que acabou não havendo.

De Bergman, além de seus filmes e da leitura dos roteiros publicados fica o imenso prazer de um componente significativo da sua herança artística – os 38 filmes feitos por Woody Allen.

O cinema dos dois para muita gente significa o que o personagem de Allen, em Manhattan, descobre, ao filosofar sobre o sentido da vida: “O que faz valer a pena viver a vida?” pensa ele e vai enumerando: “As maçãs e as pêras de Cézanne. Um solo de Louis Armstrong. Um filme sueco”.

Claro que todos sabiam a quem ele se referia.

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