Eri Castro
Maria Lúcia Fattorelli: a
brasileira que audita a economia grega para o Syriza
Maria Fattorelli planeja fazer na
Grécia o que já ajudou a fazer no Equador: permitir que os gastos sociais
superem os gastos com o sistema financeiro.
Por Bernardo Jardim – Carta Maior
Uma das pontes entre o Brasil e as
novas experiências políticas da esquerda socialista europeia chama-se Maria
Lúcia Fattorelli. Auditora da Receita Federal desde 1982, a coordenadora do
movimento Auditoria Cidadã da Dívida foi convidada por Zoe Konstantopoulou,
deputada do Syriza que ocupa a presidência do Parlamento Grego, a compor o
Comitê pela Auditoria da Dívida Grega.
Maria Lúcia já participou de
processo semelhante no Equador, quando o presidente Rafael Correa decidiu pela
anulação de 70% da dívida que emperrava o investimento público. “Pela primeira
vez na história inverteu-se a equação: os gastos sociais superaram os gastos
com a dívida”, lembra em entrevista à Carta Maior.
O sistema
De acordo com Fattorelli, o significado
maior de auditar uma dívida pública é desmascarar o que ela chama de “sistema
da dívida”. “É um negócio altamente rentável e que beneficia um pequeno
segmento social localizado nos mercados financeiros”, descreve.
Funciona assim: sem transparência e
com enormes privilégios (legais, financeiros, políticos) aos bancos e agências
de risco, o Estado pega dinheiro emprestado de instituições financeiras
públicas ou privadas. O valor emprestado cresce brutalmente em função de juros
elevadíssimos. E a dívida vai se tornando meramente contábil - isto é, jogo de
juros sobre juros. Segundo Fattorelli, “o endividamento público se converte
numa maneira de desvio de recursos públicos em larga escala”.
Segundo o Tesouro Nacional, em
2013 o governo federal gastou R$ 718 bilhões com juros e amortizações da dívida
interna e externa, o que representou 40,3% do orçamento federal (o valor gasto
em educação, por exemplo, é de 3,4%, em transporte 1%).
Mas não é a corrupção que afasta
nosso dinheiro dos lugares em que ele deveria ser investido?
Pois bem. O mensalão, considerado
à época o maior caso de corrupção do país, comprovou R$140 milhões desviados.
No ano de 2005, a dívida pública consumia mais de dez mensalões por dia.
O caso grego
A manipulação da taxa de risco
levou o governo grego a aceitar acordos muito prejudiciais com o FMI e a União
Europeia. Endividada e fragilizada, a outrora obediente Grécia se viu invadida
por instituições financeiras internacionais, grandes corporações e, por
consequência, pela agenda neoliberal: desmantelamento dos direitos sociais e
privatização das empresas públicas mais lucrativas.
“Esse mecanismo de pressão da
Troika (comitê de bancos, FMI e Banco Central Europeu) contra os países – que
por sua vez têm que negociar de maneira isolada – demonstra uma grande
assimetria entre as partes, um claro indício de ilegitimidade”, denuncia
Fattorelli. E lembra que o FMI é uma agência especializada da ONU, como a OIT e
a FAO. Deveria, portanto, atuar segundo os objetivos da Carta da ONU e da
Declaração Universal dos Direitos Humanos - e não segundo os interesses do
mercado financeiro.
Ainda segundo Fattorelli, o caso
grego constitui um forte exemplo do dano provocado pelo Sistema da Dívida às
mulheres. “No início da crise”, relembra, “o desemprego em massa de mulheres
foi utilizado para expandir ainda mais os cortes de gastos exigidos pelo
programa de austeridade fiscal imposto pela Troika: serviços de creches,
assistência social e até certos serviços de saúde deixaram de ser prestados
pelo Estado”. A justificativa? Ora, se as mulheres estavam em casa, elas
assumiriam tais serviços.
O exemplo equatoriano
O Equador, com auxílio de Maria
Lúcia, provou a eficiência da ferramenta de auditoria. Em 2007 o presidente
Rafael Correa criou uma comissão para realizar auditoria da dívida interna e
externa equatoriana, nomeando diversos membros nacionais e 6 internacionais.
Maria Lúcia representou o Brasil. O resultado, segundo ela, foi impressionante:
“permitiu a anulação de 70% da dívida externa em títulos. Os recursos liberados
têm sido investidos principalmente em saúde e educação”.
A auditoria equatoriana consistiu
em tornar transparentes os números da dívida; verificar quais foram os
mecanismos e operações que geraram dívidas desde a sua origem; quem se
beneficiou dos recursos; em que esses foram aplicados; verificar se foram
cumpridas as normas legais e administrativas existentes; quais os impactos
sociais, ambientais etc. Após o exame, e diante das evidentes ilegalidades,
ilegitimidades e mesmo fraudes comprovadas, só restou a Rafael Correa “dar o
calote” numa dívida irreal.
O mais repisado argumento contra a
auditoria da dívida é bastante simples: partindo do pressuposto que a auditoria
é um calote ao sistema financeiro, o mesmo sistema financeiro fecharia o acesso
ao crédito dos países caloteiros. Conforme argumenta Fattorelli, o Equador
mostra o oposto: o risco-país caiu e o acesso ao crédito passou a custar menos.
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