19 de fev. de 2008

CINEMA : UMA GRANDE PAIXÃO
A maior dificuldade em ter sido um cinéfilo precoce, é fato de você chegar no topo de quase 40 anos de vida sabendo que já assistiu praticamente todos os filmes imaginavelmente bons do planeta terra. Ao contrário da literatura, é perfeitamente possível um sujeito afirmar no alto de quase 40 anos de vida que esgotou seu interesse por cinema porque já viu tudo o que merecia ser visto. Aí falar sobre filmes com outras pessoas que gostam de cinema pode se tornar uma fonte de frustração, quando você descobre que aquele seu colega que alega adorar clássicos, efetivamente só assistiu "Cantando na chuva", alguns Hitchcocks e um filme da Audrey Hepburn, ou que relaciona 'clássicos' com os filmes do Coppola da década de 70 ou com o cinema americano independente da década de 60. Para um cinéfilo genuíno o limite para chamar um filme de clássico é a década de 50 (embora ele possa abrir algumas exceções à de 60 quando se trata de filmes que ainda trazem uma atmosfera näif tipicamente fifties , ou o tipo clássico de montagem. Isto é, À queima roupa ( 1967) de John Boorman não é um clássico, Charada (1963), sim), pois não há como a terminologia 'clássico' remeter a outra coisa senão à Gene Tierney, Error Flynn, noir, Billy Wilder, His girl friday, Cary Grant, Howard Hawks, RKO, e assim vai.

Frustrante também: quando você sabe que o sujeito só expressa uma admiração muito encarniçada por algum diretor talentozinho, tipo, sei lá, Paul Thomas Anderson, pelo fato de nunca ter visto nenhum William Wellman, nenhum Lubitsch, nenhum John Ford (que nem é o pior tipo - até vá lá gostar de Anderson - o pior tipo é aquele que não consegue entender porque Spielberg é bom e Antonioni é um pulha).

Cinema é aquela arte que ficou no meio do caminho na busca de seu estatuto de 'genuína forma de expressão estética', e opera como um verdeiro pharmakon quando toca extremos opostos: quando tem pretensões por demais esteticistas, se torna patética (e mata de tédio, por extensão), se não tem pretensão nenhuma e só busca o entretenimento fácil, se torna estúpida. Se tiver que escolher, preferível o entretenimento estúpido ao esteticismo vazio: a diferença entre uma maioria estúpida a uma minoria imbecil, é que a primeira ao menos revela alguma sensibilidade, mesmo que rudimentar, enquanto a segunda já se tornou de fato inumana. E um dos problemas do cinema, que é o problema de outras artes também, é o hábito daquela hordinha em atribuir sentidos inúmeros a uma obra obscurantista e de fácil execução. O que há de comum nos objects trouvés, ready-mades, happenings, und so weiter, é que seja por sua falta de clareza ou seu deslavado simplismo, sempre estão associados à fácil execução, e seus resultados duvidosos - mas nem por isso ausentes de público - sempre serviram de álibi para a falta de imaginação, fórmula inversa de Pound, que dizia, com toda razão, que a arte é beleza difícil.

*Vício tipicamente da postmodernité este solipicismo em capitalizar o suposto 'elemento característico' do veículo em questão a fim de produzir uma 'arte pura'. Arte pura é esculhambação da grossa - não existe 'literatura pura', 'poesia pura', 'filosofia pura' ou 'ciência pura'. O resultado inevitável da busca pela 'pureza' absoluta sempre vem a ser a dissolução, assim como a tentativa oposta de anular as fronteiras entre as áreas - apenas o outro lado da moeda (só ver aqueles casos mais extremos do concretismo, que não vinga ser nem artes plásticas e muito menos poesia; no caso da filosofia, só lembrar da obsessão doentia de Derrida pela sacralidade do texto escrito e sua negação do logos. Se bem que quase ninguém mais - quase, quase - leva o Derrida a sério). E como dizia Henry Levin (ah, o grande Henry Levin, que bem faria um Henry Levin a um Roland Barthes) as coisas só existem em contexto, jamais nelas próprias.*Mas então o cinema.

Todos gostam de cinema, e todos se sentem no direito de poder opinar sobre cinema, como dizia Truffaut quando observava que ao contrário da literatura, o diletante em cinema não precisa conhecer as ferramentas do especialista. E deve ser algo muito raro encontrar um connoisseur que disserte sobre as relações entre a imagem e a filosofia bergsoniana ou sobre a estética do cinema neo-realista, que não seja uma pessoa chata. Como atividade passiva, o cinema é perfeito para aquelas horas de torpor mental em que você não está com a mínima disposição para seguir um Nabokov, Musil ou Tolstoi.

E se não chega a ser uma experiência estética completa, ou uma forma legítima de aquisição de conhecimento, ao menos sua dignidade como entretenimento de alto nível basta para não te deixar com aquele peso na consciência por um dia disperdiçado em tirar sujeira do umbigo ou olhar o bolor da parede.

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