8 de out. de 2007

Um novo modo de ler


Eis um fato que hoje pouco se comenta (ou que, na verdade, pouco se sabe): o livro não tinha maior importância na aurora do sistema de pensamento que veio a se chamar de Ocidente. Isto foi frisado por Heidegger. Pensar, para o antigo grego, era atividade pública e oral.
Em nossa modernidade, entretanto, a forma codex (escrita unidirecional, páginas organizadas em cadernos e costuradas), depois chamada livro, impôs-se aos usos e aos espíritos como locus do conhecimento centrado, da leitura que constitui pastoralmente a cidadania, da produção do sentido e do real medidos pela escala do humanismo. O livro é a melhor das metáforas para a educação, para o conhecimento que, no passado fordista, garantiu a ascensão social dos estratos mais pobres e sem o qual não se pode hoje conceber dinâmica de crescimento econômico. Tal é horizonte em que o livro foi olhado pelos pobres como tábua de salvação.Por isso, guardar o livro e estimular a sua circulação por políticas adequadas implicam preservar o fio condutor das idéias que garantem a transmissão intergeracional do sentido de povo e de Nação.Essa transmissão faz parte do segredo da cultura.Mas estamos inclinados a achar que o futuro humano dos modos de transmissão do saber depende não tanto da mera natureza técnica do dispositivo (bits ou papel), e sim da conquista de uma forma suscetível de nos oferecer abrigo contra os perigos de morte do sentido. Pensamos que, para isso, seria necessário termos como ponto de partida o fato que a leitura é, hoje, uma prática heterogênea ou plural.Ou seja, há novos modos de ler.De fato, o impresso (livro, revista, jornal, etc.) não é a única coisa que se lê. Basta atentarmos para todas as acepções da palavra latina interpretari, para nos darmos conta de que ela significa também “ler” –– e numa maior amplitude do que legere, que se consolidou com o sentido de recolher e juntar as letras dentro das regras da razoabilidade (o logos moderno) unidimensional e linear. Na verdade, nós estamos lendo quando interpretamos um anúncio publicitário, um outdoor, um videoclipe. E certamente lemos um hipertexto –– em que fazemos necessariamente conexões com uma textualidade diversa –– de maneira diferente de um livro.Há, portanto, uma diversidade de escritas, assim como uma diversidade de leituras.Essa diversidade é acelerada pelas tecnologias do virtual, essas mesmas que conformam uma nova ambiência comunicativa e formas novíssimas de existência. Trata-se do que vimos chamando de bios midiático, ou seja, uma nova forma de vida que implica indistinção entre tela e realidade –– realidade “tradicional”, bem entendido, uma vez que a realidade de hoje já se constitui dentro da integralidade do espetáculo ou da imagem a que aspira o virtual.Por conseguinte, as novas formas de escrita e de leitura circulam no mesmo contexto sócio-cultural dos modelos industriais que transformam a vida em sensação ou em entretenimento. É o contexto de uma economia poderosa voltada para a produção e consumo de filmes, programas televisivos, música popular, parques temáticos, jogos eletrônicos.Mas o importante a se notar aqui é que a diversidade de escritas e leituras implica o descentramento cultural do livro, isto é, a perda do monopólio clássico de manutenção da memória e transmissão da cultura. Este é um movimento irreversível, principalmente quando se considera que é a juventude o sujeito coletivo da apropriação dessas novas escritas e leituras.Em princípio, deveríamos nos rejubilar com essa verdadeira mutação cultural. Entretanto, somos levados a ponderar sobre a ausência de mediações ético-políticas para a relação que se estabelece entre esses jovens e as grandes organizações industriais, responsáveis pela produção e venda dos textos (letrados e imagísticos) que suscitam a diversidade de leituras. A única lógica aí predominante é a do mercado, e não da escola, esta forma de transmissão da cultura, baseada no livro, que vem criando os quadros das profissões e da cidadania desde o começo da modernidade européia.Ao Estado impõe-se certamente a obrigação de formular políticas públicas de cultura capazes de construir as mediações requeridas pela mutação tecnológica e cultural em andamento. O Ministério da Cultura e o Ministério da Educação são os braços do Estado que já movimentam ativamente neste sentido.

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