Presa e torturada durante a ditadura, a
atriz Bete Mendes, que foi a primeira a denunciar o coronel Brilhante
Ustra, fala sobre sua experiência e diz como foi humilhada, seviciada e
vilipendiada pelo regime militar
247 - Sobrevivente da ditadura, a atriz Bete Mendes,
relatou à jornalista Eleonora de Lucena, da Folha, sua experiência na
prisão, onde foi torturada. Leia abaixo:
Sobrevivi à tortura
Fui presa duas vezes. Na primeira, não fui torturada
fisicamente. Na segunda, foi total. Fui torturada [em 1970] e denunciei
[o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra]. Isso me marcou
profundamente. Não desejo isso para ninguém --nem para meus inimigos. A
tortura física é a pior perversidade da raça humana; a psicológica,
idem.
Não dá para ter raiva [de quem me torturou]. A gente é tão
humilhado, seviciado, vilipendiado que o que se quer é sobreviver e
bem. Estou muito feliz, sobrevivi e bem. E não quero mais falar desse
assunto.
Superei isso com tratamento psicológico e com trabalho.
Agradeço à família, à classe artística, aos amigos que foram meu
alicerce.
Carlos Zara me convidou para fazer a novela "O Meu Pé de
Laranja Lima", e isso me salvou. Continuei o trabalho artístico, fui
fundadora do PT, fui deputada federal duas vezes e secretária da Cultura
de São Paulo.
Comecei a fazer teatro e cantar com seis anos de idade.
Com oito já participava de manifestações de alunos. Era do grêmio do
colégio, depois fui para o diretório da faculdade. Em bibliotecas
públicas ou pegando livros emprestados lia tudo: Rousseau, Marx, Mao,
Lênin, Gorki, Aristóteles. Depois, adotei o codinome de Rosa em
homenagem a Rosa Luxemburgo.
VAR-PALMARES
Na adolescência escrevi textos de peças de teatro. Quando
fui presa, eles levaram esses textos. Achavam que eles eram prova de
crime, que depunham contra mim. Nunca mais os recuperei. Era coisa tão
pouca, boba, pessoal.
Quando fecharam as portas à democracia, me senti usurpada,
revoltada, aprisionada. Achei que a única saída era entrar numa
organização revolucionária contra a ditadura militar. Entrei na
VAR-Palmares. Fizemos aquela opção. Foi certa, errada? É difícil julgar
hoje.
A minha visão era a revolução socialista: tirar poder dos
militares, dos opressores, do capitalismo selvagem. Deixar a gente
governar para o bem de todos, com todos participando.
Eu tinha 18, 19 anos, e achava que podia fazer tudo. Não
tinha consciência do risco imenso que estava correndo. Era atriz de uma
novela que explodia no Brasil, "Beto Rockfeller", estudava ciências
sociais na Universidade de São Paulo e participava de uma organização
clandestina revolucionária. Aí deu zebra.
O medo era a pior coisa que a gente sentia na época.
Historicamente tem que se reconhecer que nós entramos numa ditadura
muito mais pesada do que foi dito no passado. Isso vai sendo desdito
atualmente pela Comissão da Verdade.
Hoje não tenho medo de retrocesso, mas é preciso prestar
atenção em manifestações como de movimentos nazistas em vários países e
no Brasil. Por exemplo? O coronel Brilhante Ustra faz parte desse
movimento. Ele tem um site. Há jovens fazendo movimento nazista.
DEMOCRACIA
É um receio. É preciso ser cauteloso em relação a
movimentos que podem ser prejudiciais ao avanço democrático. Mas impedir
jamais, porque a gente legitima a manifestação de todos, de opiniões
diversas. É preciso cuidar da democracia para que esses movimentos não
cresçam.
Sou política como qualquer cidadão. Sou cidadã, atriz,
socialista. O socialismo se constrói todo dia. Não temos o modelo
socialista do passado, mas a gente constrói um novo. Quero continuar
trabalhando como atriz e viajar mais. Poder viver essa democracia até
morrer. Sonho político? Que o trabalho escravo acabe no Brasil.
Estou aqui viva e feliz. Minha vida é muito efervescente.
Emendei três trabalhos na televisão. Faço o que eu gosto: ser atriz. Não
vamos ficar presos no passado. O que eu tinha que dizer disse com todas
as letras na época. "Revival" não tem sentido. Meu assunto hoje é [a
novela] "Flor do Caribe".
Problema de audição? Tenho. É que eu fui torturada. [Fica com os olhos marejados].
Depoimento a ELEONORA DE LUCENA em Brasil 247.
Enviado por Eri Santos Castro.
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