Como sabe qualquer pessoa que tenha lido O caçador de pipas, romance de grande sucesso de vendas, a primavera é recebida em Cabul com legiões de pipas, subindo, mergulhando e manobrando audaciosamente. Mas não estamos falando aqui das pipas que crianças empinam em preguiçosos piqueniques de final de semana. O que se vê nos céus são máquinas de voar altamente precisas, controláveis por meio de delicados movimentos das mãos de um mestre. O apego dos afegãos pela competição e (ainda que poucos o admitam) pelos jogos de azar significa que praticamente qualquer coisa oferece oportunidade para uma briga a uma aposta, de cachorros e galos a lesmas, carneiros, ovos cozidos e, claro, até mesmo pipas. O objetivo desse balé cruel é cortar a linha da pipa do oponente com a linha de sua pipa, e fazer com que a preciosa jóia de papel e bambu espirale sem controle até cair. Bandos de meninos pobres demais para comprar pipas correm para tentar capturar aquelas que caem depois dos duelos, para que possam eles mesmos participar da disputa. Eles são os caçadores de pipas.
Em um país no qual a maioria das histórias de sucesso envolve certa dose de fracasso - há 1,6 milhão de meninas matriculadas no sistema de educação, mas centenas de escolas foram incineradas pelos insurgentes -, mais ou menos o único setor que demonstra progresso incontestável hoje em dia é o de produção de pipas. Uma das decisões mais injustificadas do regime do Taleban, tão absurda quanto proibir que as pessoas ouvissem música e obrigar todos os homens a cultivar barbas, foi a proibição total à feitura e operação de pipas. Nos primeiros e entusiásticos dias depois da queda do Taleban, em dezembro de 2001, os homens fizeram a barba, os carros circulavam pelas ruas com o rádio a todo volume e pipas tomaram o céu da cidade. Para Noor Agha, o melhor dos fazedores de pipas de Cabul, os negócios estão em alta desde então.
Não que isso seja perceptível para quem vê sua casa. Agha vive em um túmulo. Os terrenos custam tão caro hoje em dia em Cabul que os mortos agora enfrentam a concorrência dos vivos na luta por espaço. Um imenso influxo de refugiados retomados do exílio depois da retirada do Taleban terminou por superlotar os bairros até então desertos em tomo do velho cemitério, e levou alguns moradores a procurar espaço em meio às tumbas. A oficina de Agha fica em sua sala de estar, onde ele comanda uma equipe formada por suas duas mulheres e 11 filhos, cortando, montando e colando os intrincados mosaicos de papel de seda que permitem que suas pipas se destaquem tanto por sua beleza quanto por sua manobrabilidade. O segredo está na cola, ele diz, exibindo um pote de uma pasta verde de cheiro horroroso. "Ninguém conhece minha receita por produzir cola que se mantém completamente lisa quando seca, sem causar rugas no papel", afirma. Os negócios vão tão bem hoje em dia que Agha teve de ensinar suas mulheres a fazer pipas. Ele orgulhosamente classifica uma delas como "a segunda melhor fazedora de pipas de Cabul", ainda que insista em que ela jamais será tão boa quanto ele. "Tenho 45 anos de experiência. Ela não conseguirá recuperar o atraso". Sua filha de seis anos talvez tenha mais chance. Ela já faz pipas para vender às crianças do bairro, cobrando um afegani (dois centavos de dólar) por peça.
Agha vem trabalhando febrilmente, produzindo centenas de pipas que serão usadas na filmagem da muito aguardada adaptação do romance O caçador de pipas, de Khaled Hosseini, em produção na China. Agha diz que trata cada pipa produzida para o filme como se fosse uma obra de arte, assinando-as com seu nome e com a marca do escorpião que caracteriza seu trabalho. Ainda que poucas delas devam ser usadas em competição, ele emprega as técnicas de produção que refinou ao longo dos anos de vôo e combate - curvando a estrutura de bambu de maneira precisa, moldando juntas invisíveis e criando uma forma de impregnar linhas de algodão com vidro moído, o que permite cortar mais facilmente as pipas dos oponentes.
A técnica usada para o vidro foi ensinada a Agha por seu pai. Fazer pipas é a profissão da família há quatro gerações. Para os fazedores de pipas, as linhas com vidro são o equivalente a evoluir do uso do arco e flecha para o das armas de fogo. No entanto, existe o risco de que as pipas estejam se tornando eficientes demais. Por algum tempo, elas passaram a ser guiadas com linhas de pesca paquistanesas, de nylon, que são quase invulneráveis a ataque. Depois, astutos comerciantes de armas começaram a importar arame fino e afiado, da China. A escalada de ameaças de destruição mutuamente assegurada, de acordo com Agha, que é reconhecido por todos como o melhor lutador de pipas da cidade, eliminou o aspecto artístico do esporte. "Agora é como uma briga de crianças", ele se queixa. "Sem técnica, sem habilidade". Por isso, Agha deixa as colinas de Cabul para a geração mais jovem, que encontrará novas maneiras de vencer. Hoje em dia, ele só participa de disputas, sempre intensas, com lutadores de pipas mais velhos, nas planícies de Shomali, ao norte da cidade. Toda sexta-feira, os veteranos do esporte se enfrentam até que só reste uma pipa no ar. Na maioria das vezes, é a de Agha. "Fazer pipas é meu trabalho", ele diz. "Lutar com elas é minha doença".
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